“Oppenheimer” não se contenta em explorar a invenção mais destrutiva de todos os tempos: ele disseca as camadas íntimas e políticas por trás de um homem capaz de reconfigurar os rumos da humanidade. Em meio a relâmpagos de fogo, nuvens de areia e closes incessantes nos rostos tensos de cientistas e líderes militares, Christopher Nolan constrói um relato tão psicológico quanto épico. A escolha de filmar em IMAX amplia não apenas os cenários grandiosos de Los Alamos, mas também o turbilhão interno de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), que encara a criação da bomba atômica como triunfo científico e maldição moral.
A narrativa se reparte em esferas temporais entrelaçadas, remetendo ao estilo característico de Nolan. Enquanto o diretor salta dos bastidores do Projeto Manhattan — com seus experimentos urgentes e jogos de poder — para os ritos inquisitivos dos anos 1950, o espectador acompanha a jornada de um herói trágico cujas visões de grandeza se chocam com a realidade implacável do cenário pós-guerra. Nesse vaivém, a lógica cronológica é substituída pela lógica da consciência, reforçada por montagens “físseis”: cortes bruscos que revelam não apenas as reações em cadeia das armas nucleares, mas também as decorrências emocionais das escolhas de seus criadores.
O elenco transborda intensidade, e cada rosto se transforma em palco de receios e arrependimentos. Cillian Murphy domina a tela ao dar vida a um Oppenheimer simultaneamente magnético e vulnerável, preso entre sua ambição científica e as consequências mundiais de sua obra. Emily Blunt interpreta Kitty, a esposa incisiva que prevê crises que o marido insiste em ignorar, enquanto Florence Pugh, como Jean Tatlock, pontua a história com questionamentos ardentes. Paralelamente, Matt Damon encarna o general Leslie Groves, pragmático e obstinado, e Robert Downey Jr assume o papel do ressentido Lewis Strauss, dedicado a minar a reputação de Oppenheimer quando já não lhe resta nada além de sua consciência atormentada.
A construção de cenas no imenso deserto do Novo México culmina no teste Trinity, capturado de forma a envolver o público no ímpeto destrutivo que Oppenheimer e sua equipe desencadeiam. As labaredas colossais transformam-se em metáfora de um gênio que, por mais brilhante que seja, não controla a própria criação. Assim, o filme evita discursos didáticos sobre as substâncias químicas empregadas e concentra-se em como cada fagulha pode incendiar mundos — sejam cidades distantes ou psiquês já fragilizadas.
O período pós-guerra, por sua vez, revela um cientista em conflito: a mesma nação que o endeusou passa a questionar seu patriotismo, conduzindo-o a audiências que parecem tragá-lo em uma espiral de acusações, segredos e invejas. Aqui, Nolan carrega o tom de tensão política e expõe as engrenagens de um Estado capaz de destruir reputações com a mesma eficiência com que incendeia territórios inimigos. Cada fala em tribunal, cada documento confidencial e cada sussurro sobre simpatias comunistas soam como estilhaços de uma explosão que se recusa a cessar.
No fim, “Oppenheimer” transcende a mera cinebiografia ao se tornar um painel que mescla tragédia pessoal, febre científica e vaidades governamentais. A montagem elaborada de Jennifer Lame, aliada à trilha constante de Ludwig Göransson, imprime um ritmo quase operístico ao relato, evocando referências que vão de Oliver Stone a Terrence Malick. O resultado é um convite a refletir sobre o preço do avanço tecnológico e a fragilidade de qualquer ser humano posto diante de um poder sem precedentes.
Não faltam vozes que critiquem a longa duração ou o tempo investido em tramas paralelas — sejam os relacionamentos de Oppenheimer ou os processos burocráticos que o envolveram após a guerra. No entanto, essa suposta dispersão consolida o tema central: tudo, no universo de Oppenheimer, age como reação em cadeia. Suas relações amorosas, seu idealismo político, seus arranjos científicos — tudo dispara consequências que reverberam muito além do laboratório.
Ao final, temos um filme que escancara como a criação de uma única pessoa pode se tornar catalisadora de mudanças mundiais e perpétuos questionamentos éticos. Christopher Nolan não entrega verdades absolutas: oferece um mosaico de perspectivas e deixa o público diante do enigma de um homem cujo maior feito foi, também, seu maior tormento. “Oppenheimer” permanece na memória tanto pelo espetáculo visual e sonoro quanto pelos conflitos que ressoam em cada diálogo e em cada olhar. É uma obra que, sem cair em obviedades, extrai o máximo de sua narrativa multifacetada para mostrar o impacto profundo que um único disparo pode ter na história — e na alma de quem aperta o gatilho.
★★★★★★★★★★