O melhor lançamento de 2025 também é, neste momento, o filme mais assistido do mundo na Netflix Divulgação / Motion Blur Films

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“Número 24” desafia o modo como o cinema interpreta conflitos armados e convida o público a refletir sobre as contradições de tentar ilustrar a crueldade da guerra sem cair em discursos que a exaltem. Algumas produções glorificam o derramamento de sangue ao inflamar paixões extremistas, enquanto outras buscam reforçar a importância de não reviver as páginas mais sombrias da história. Entretanto, mesmo filmes que se propõem a criticar enfrentamentos bélicos podem tropeçar na incoerência se alinharem sua narrativa a interesses políticos que perpetuam a violência. Dentro desse panorama complexo, a obra de John Andreas Andersen se inspira na trajetória de Gunnar Sønsteby, um norueguês que atuou ativamente na resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Longe de oferecer respostas simplificadas, o longa sugere debates sobre heroísmo, obrigações patrióticas e dilemas éticos que se estendem muito além do campo de batalha.

No começo, a lente da câmera apresenta um Sønsteby idoso (vivido por Erik Hivju) prestes a palestrar para um grupo de estudantes na cidade de Rjukan. Numa abordagem próxima do documental, percebe-se a inquietação do veterano ao mastigar um pedaço de madeira, indício de que revisitar lembranças de guerra requer uma dose de coragem emocional. Sua fala conduz o público a um período que remonta ao final dos anos 1930, quando o jovem Gunnar (interpretado por Sjur Vatne Brean) abraça com discrição, mas firmeza, as atividades de resistência na Noruega. O contraste entre os passeios nas montanhas com seu amigo Erling Solheim (Jakob Maanum Trulsen), que não demonstra a mesma preocupação com o poder nazista, e a situação concreta de livros queimados pelos seguidores de Hitler desenha um cenário propício à transformação de Gunnar num colaborador decisivo para a causa norueguesa.

Em sua escalada, Gunnar ingressa no exército, elabora panfletos contrários à ideologia nazista e, por fim, recebe o codinome “Número 24”. Ao contrário dos típicos protagonistas carismáticos de filmes de guerra, Sønsteby é apresentado como alguém cuja persistência silenciosa compensa a ausência de gestos grandiosos. Andersen, que antes dirigiu grandes produções como “Mar do Norte” e “Terremoto”, usa sua experiência para construir sequências de tensão, incluindo explosões em fábricas de armamentos e operações arriscadas. A montagem eletrizante nessas passagens ressalta a urgência das missões clandestinas. Porém, ao mesmo tempo que o enredo se vale de cenas marcadas por fogo e perseguições, também se volta para os aspectos morais que rondam o protagonista, especialmente quando ele lidera execuções de noruegueses simpáticos ao regime de Hitler, entre eles Karl Marthinsen e o próprio Erling Solheim.

O ponto de virada ocorre quando a conversa de Sønsteby com os estudantes deixa de ser uma mera transmissão de fatos. Os jovens questionam não apenas o uso da força para derrotar a tirania, mas também o peso ético das mortes justificadas pelo ideal de libertação. Em meio ao debate, um participante revela ter perdido familiares em 1945 por ações capitaneadas por Gunnar, exigindo que o ex-combatente reconheça essas perdas diante de todos. Nesse instante, o filme se diferencia das habituais narrativas de “herói que enfrenta nazistas” e alcança seu momento mais original. O confronto entre ponto de vista pessoal e dever patriótico abre espaço para dúvidas profundas e respostas repletas de ambiguidades. Como se não bastasse a delicadeza emocional, Andersen ainda surpreende ao incluir “Exit Music (For a Film)”, da banda Radiohead, durante uma cena carregada de tensão — escolha estilística que gera discussões sobre a coerência de inserir uma faixa contemporânea em um relato histórico.

Embora dois terços da obra possam remeter ao padrão de histórias de espionagem e sabotagem na guerra — com infiltrações perigosas e perseguições de alto risco —, o clímax agrega complexidade ao retratar o peso das ações de Sønsteby. O roteiro abandona qualquer noção de heroísmo unilateral para evidenciar as consequências dos métodos empregados por alguém que, ao lutar contra um regime opressor, também precisou lidar com a culpa de ter eliminado conterrâneos. Ao recusar a ideia de que Gunnar seja infalível, o diretor realça falhas, arrependimentos e hesitações do personagem, recurso raro em filmes biográficos que usualmente elevam seus protagonistas a um status quase imaculado. Esse olhar minucioso sobre a psique do combatente se intensifica no confronto dialógico do último ato, que transpira urgência e supera, em termos de suspense, muitos trechos centrados em tortura ou correria.

Para consolidar esse panorama, a caracterização do período histórico investe em figurinos que remetem fielmente aos anos 1940, ambientes cuja iluminação e composição de cena reforçam o clima sufocante de uma nação ocupada, além de um projeto sonoro que intensifica cada estopim de violência ou silêncio nervoso. Sjur Vatne Brean encabeça o elenco com um Gunnar que equilibra determinação e inquietação interna, enquanto Philip Helgar, Ines Hoysaeter Asserson e outros nomes dão estofo ao retrato de uma população dividida. Ainda assim, quem ganha destaque absoluto no campo dramático são Erik Hivju e Flo Fagerli, cuja troca de falas poderia facilmente ancorar uma obra inteira repleta de embates retóricos. A energia que se estabelece entre eles remete ao vigor de um clássico como “12 Homens e uma Sentença”, sugerindo que uma versão mais enxuta e centrada nesses argumentos poderia alcançar profundidade ainda maior.

Na reta final, “Número 24” se debruça sobre uma reflexão inevitável: até que ponto o combate à opressão pode fazer com que seus defensores adotem métodos tão brutais quanto aqueles que criticam? Alguns enxergam na narrativa um lembrete de que nada justifica romantizar a guerra, enquanto outros alegam que o filme, apesar de uma conclusão forte, permanece repetitivo se considerarmos a realidade de inúmeras regiões que continuam a sofrer bombardeios e violações de direitos. Não é surpreendente, portanto, que certas pessoas sintam desconforto ao testemunhar produções que tentam poeticamente evocar memórias sombrias enquanto, no presente, se apoiam políticas ou atitudes que perpetuam o mesmo caos que elas condenam. Ainda assim, o epílogo revela-se essencial para quem aprecia questionar o que define heroísmo e culpa em um universo onde não há respostas definitivas. Se o peso desse debate se mostrar excessivo, fica ao critério de cada um interromper a sessão, pois é inegável que a realidade pode ultrapassar a ficção ao expor quão tênue é a fronteira entre vencedor e vencido.

Filme: Número 24
Diretor: John Andreas Andersen
Ano: 2024
Gênero: Biografia/Espionagem/Guerra
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★