O filme indispensável para começar o ano: a obra-prima na Disney+ que vai transformar sua visão sobre amizade, autoconhecimento e solidão Jonathan Hession / Disney +

O filme indispensável para começar o ano: a obra-prima na Disney+ que vai transformar sua visão sobre amizade, autoconhecimento e solidão

Coisas estranhas acontecem na ilha criada por Martin McDonagh, onde se concentra toda a ação de seu filme mais recente. O plano geral aéreo desse pedaço de mundo engana com um céu sem nuvens durante o dia e franjas de morro a abraçar o oceano, plácido e sobranceiro, e então pode-se até supor que “Os Banshees de Inisherin” seja mais uma daquelas comédias românticas à “P.S. Eu Te Amo” (2007) que escolhem cenários agrestes para servir de complemento a casais que vivem as muitas procelas do amor. Logo fica claro que, fora a moldura, o filme de Richard LaGravenese não tem nenhum ponto de contato com o que McDonagh quer contar, evocando as mitologias escandinava e celta. Seu impecável roteiro une elementos como a trilha sonora de Carter Burwell e a fotografia de Ben Davis, fazendo com que a narrativa marque um ritmo orgânico, bastante adequado para o susto que o diretor quer pregar na audiência.

A Guerra Civil Irlandesa (1922-1923) é o verdadeiro fantasma a assombrar os habitantes de Inisherin, e ao longe ouvem-se os estampidos de canhões com os quais aquela gente rude aprendeu a conviver. Pádraic Súilleabháin, o produtor de leite do vilarejo, acha sua vida perfeita e assim pretende continuar, na casinha de pedra ao lado da irmã, Siobhán, e da burrica Jenny, e fazendo suas visitas ao amigo violinista Colm Doherty, com quem toma uma cerveja na única taberna do lugar, às duas da tarde, sem falta. Essa rotina nada singular acaba justificando parcialmente o que vem a seguir, por mais que no princípio se ache execrável a decisão de Colm de romper com o melhor amigo, alegando que não suporta mais suas platitudes — o músico lembra que uma vez foi obrigado a escutar por quase uma hora as lamentações de Pádraic acerca dos dejetos de Jenny —, seu semblante parvo, suas opiniões tão ligeiras sobre tudo e que precisa empregar o tempo que lhe resta em algo de útil. Pano longo.

Quem ousa dizer que Colm está errado? E quem não se compadece do pobre Pádraic, que não se resigna e segue procurando pelo agora ex-amigo, desencadeando a tragédia levada por McDonagh do jeito mais leve possível? Não há respostas fáceis em “Os Banshees de Inisherin”, no qual o diretor-roteirista aproveita para elaborar um tratado sobre a violência e a natural propensão do homem à barbárie, reeditando em 1923 o argumento central de “Três Anúncios para um Crime” (2017). Enquanto isso, Colin Farrell e Brendan Gleeson dão juntos o mesmo show que o apreciado em “In Bruges” (2008), abrindo alas para Kerry Condon na pele da judiciosa Siobhán — que à primeira vista também parece uma tola em seu onipresente cartesianismo — e Barry Keoghan, a cereja do bolo. Depois que Pádraic e Colm selam de vez a animosidade que os irá perder não muito tempo depois, é Dominic, o personagem de Keoghan, quem passa a tolerar as estultícias do leiteiro, até que, mais uma vez, ele dá todos os motivos para uma nova defecção. E um outro infortúnio se encaminha.

Sem saber, Pádraic assume a forma dos tais banshees, almas penadas que eivam de sangue e de morte aqueles que delas se aproximam e, pior, que delas resolvem afastar-se sem prévio aviso e a devida licença. Malgrado nada jamais esteja definido — uma sequências na taberna, quando Colm diz umas verdades ao pai policial de Dominic, depois que este surra Pádraic por ter revelado que o garoto sofria abusos em casa — arrancam uma ou outra furtiva lágrima, a figura decrépita da Senhora McCormick, a feiticeira encarnada por Sheila Flitton, está sempre a cercá-los e a esfregar-lhes a iminência da desgraça no rosto. Nesse momento, o destino dos homens de Inisherin já estava traçado, bem como o da Irlanda, uma terra pródiga em beleza e um ímpeto diabólico por autodestruição.

Filme: Os Banshees de Inisherin
Diretor: Martin McDonagh
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Drama
Avaliaçao: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.