Desde os primórdios de Hollywood, a máquina cinematográfica tem demonstrado uma fascinação em reimaginar clássicos da literatura e da tradição popular, perpetuando-os através das gerações. Em 1937, Walt Disney revolucionou a indústria ao transformar um conto atemporal dos irmãos Grimm em “Branca de Neve e os Sete Anões”, a primeira animação longa-metragem em cores. O filme, carregado de inovações tecnológicas para a época, transcendeu o entretenimento infantil, estabelecendo-se como um marco cultural. Sua narrativa, aparentemente simples, esconde camadas de simbolismo que dialogam com diferentes fases da vida, cativando tanto crianças quanto adultos ao longo do tempo.
O universo em que Branca de Neve habita é repleto de paralelos com os desafios contemporâneos. Sob um verniz de fantasia, emergem temas como corrupção no poder, submissão cega à autoridade e a luta resiliente pelo bem. A soberana malévola que governa com tirania, os subalternos que cedem à pressão e a esperança encarnada por uma figura virtuosa ecoam em nossa sociedade atual, marcada pela tensão entre valores e interesses.
Mais de sete décadas após o clássico da Disney, Rupert Sanders assumiu o desafio de reimaginar a história em “Branca de Neve e o Caçador” (2012). Valendo-se de efeitos visuais impressionantes, Sanders imprime ao conto uma atmosfera sombria e realista, que mistura drama e aventura em uma abordagem diferenciada. Sua visão audaciosa, longe de se submeter ao respeito irrestrito às versões anteriores, explora o potencial de reinvenção narrativa, ainda que sem romper integralmente com suas origens.
Na adaptação de Sanders, Branca de Neve, vivida por Kristen Stewart, abandona a aura pueril e ganha contornos de uma heroína endurecida pelas adversidades. Criada às sombras de uma mádrasta tirânica após a morte do pai, a protagonista emerge de anos de encarceramento em busca de liberdade e justiça. Stewart incorpora uma vulnerabilidade que dialoga com o espírito romântico de folhetins clássicos, mas também confere à personagem uma força interna que transcende estereótipos. Charlize Theron, por sua vez, interpreta Ravenna, a rainha vilã, com um magnetismo que mistura beleza e crueldade, embora seu arco narrativo careça de maior profundidade.
O roteiro, assinado por Evan Daugherty, Hossein Amini e John Lee Hancock, opta por uma abordagem que alterna momentos de intensa dramaticidade com cenas de aventura quase escatológica. Um dos pontos altos é a fuga de Branca de Neve, uma sequência tensa em que sua determinação desafia a brutalidade do entorno. No entanto, o potencial de algumas cenas, como o assédio sofrido pela protagonista no calabouço, é subaproveitado, sugerindo que o filme hesita em explorar completamente suas temáticas mais perturbadoras.
Chris Hemsworth assume o papel do caçador, um homem marcado por perdas pessoais que se torna uma figura ambígua na narrativa. Seu relacionamento com Branca de Neve é desenvolvido de forma sutil, sem culminar em um romance pleno, criando uma tensão emocional que se soma ao princípe William (Sam Claflin). Esse triângulo amoroso, porém, não chega a ser explorado em profundidade, deixando margem para interpretações externas e especulações sobre as escolhas criativas de Sanders.
Embora “Branca de Neve e o Caçador” não reinvente completamente a lenda, ele resgata elementos esquecidos e os apresenta em uma embalagem nova, com uma identidade visual marcante e um tom narrativo mais maduro. A mistura de fantasia e realismo confere ao filme uma singularidade que o distancia de adaptações mais convencionais. Ao transformar a narrativa em uma saga de sobrevivência e redenção, Sanders prova que mesmo os contos mais conhecidos podem ser revisitados com relevância e criatividade.
★★★★★★★★★★