Memórias familiares são construídas em uma trama de vivências que desafiam a linearidade. Entre conquistas e derrotas, momentos de alegria e tristeza, as experiências que moldam uma família transcendem o tempo. Certas lembranças permanecem incrustadas na memória, não por serem inofensivas, mas porque carregam marcas profundas. Revisitar esses fragmentos é como abrir um baú de ossos, revelando dores latentes que sobrevivem ao passar dos anos. Esse é o alicerce emocional de “Era uma Vez um Sonho”, dirigido por Ron Howard, que traça uma narrativa entre 1997 e 2011 sem aderir a uma cronologia estrita, mas equilibrando emoção e reflexão com habilidade notável.
O filme captura o drama de J.D. Vance, interpretado inicialmente por Owen Asztalos, um menino sensível e ético que enfrenta as contradições de seu meio. Quando adulto, vivido por Gabriel Basso, ele é um estudante de direito em Yale, tentando conciliar sua origem humilde com as exigências de um mundo elitista. A transição entre as fases é marcada pela continuidade da essência do personagem: um homem comum que preza pela dignidade e pelos princípios. Essa luta interna é intensificada pelo contraste entre seu desejo de ascender socialmente e o peso de suas raízes familiares.
O ambiente familiar de J.D. é centrado em Beverly (Amy Adams), sua mãe, cuja batalha contra o vício em heroína serve como um fardo emocional e prático para todos ao seu redor. Adams entrega uma atuação visceral, revelando a complexidade de uma mulher presa em um ciclo de autossabotagem. Apesar de sua intenção de melhorar, Bev é consumida por suas fragilidades, tornando-se um símbolo das cicatrizes geracionais que permeiam a família. A dinâmica se intensifica com a presença de Mamaw (Glenn Close), a matriarca resiliente que encarna a luta pela sobrevivência em um contexto de adversidades. Close entrega uma interpretação transformadora, capturando a essência de uma mulher marcada pelo passado, mas determinada a proteger sua família.
Howard constrói a narrativa com uma direção precisa, evitando melodramas excessivos. O filme explora a tese de que os padrões de comportamento são herdados, mas também questiona essa ideia ao mostrar como o esforço pessoal pode desafiar essas dinâmicas. A luta de J.D. para escapar do determinismo social e emocional é retratada com autenticidade, destacando os desafios de quem tenta romper com um ciclo de limitações.
Visões do passado emergem em flashbacks que revelam os abusos sofridos por Mamaw, uma herança de traumas que reverbera na vida de Bev e, por extensão, de J.D. Essa complexa teia de relações é explorada com profundidade, mostrando como o amor e o ressentimento coexistem em famílias marcadas pela dor. Apesar disso, “Era uma Vez um Sonho” também celebra os laços que, mesmo fragilizados, mantêm a família unida.
A direção de Howard destaca a dicotomia entre sina e superação, conferindo ao filme um tom quase cartesiano, onde cada elemento é cuidadosamente posicionado para amplificar o impacto emocional. Comparado a obras como “Amarcord” de Fellini, o filme ecoa a ideia de que, apesar das adversidades, há uma força nos laços familiares que transcende as dificuldades.
“Era uma Vez um Sonho” não é apenas uma história de superação pessoal, mas um retrato honesto e comovente das complexidades de pertencer a um grupo marcado por falhas e esperanças. Ele nos lembra que, mesmo em meio ao caos, há uma beleza singular em encontrar apoio naqueles que compartilham nossa jornada, por mais tortuosa que ela seja.
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