Pode parecer estranho, mas houve uma época em que religiões limitavam-se a acolher seus fiéis sem que fossem necessárias especulações acerca do que faziam com outros adultos na cama. Tamara Faye Bakker Messner (1942-2007) talvez seja a figura que melhor encarnou esse poder a um tempo libertário e acolhedor das instituições religiosas — no seu caso, o protestantismo neopentecostalista carismático —, uma imagem lamentavelmente datada, desde o sentido mais óbvio ao mais profundo, manifesto por suas perucas espalhafatosas, unhas postiças de duas polegadas, diamantes e ouro ao longo do corpo de metro e meio, e, claro, cascatas generosas de máscara para cílios.
Michael Showalter propõe um resgate dessa mulher singular em “Os Olhos de Tammy Faye”, uma biografia à altura da coragem e da boa insânia de sua personagem central, sem amenizar seus tropeços movidos pela ingenuidade cômoda de usufruir de uma vida nababesca cuja essência fazia questão de ignorar. Showalter e o roteirista Abe Sylvia voltam ao documentário homônimo lançado por Fenton Bailey e Randy Barbato em 2000 e dele extraem ideias frutíferas para a nova configuração do enredo, preservando Tammy Faye no centro da ribalta graças a uma daquelas performances a que Hollywood adora se apegar.
“Tammy Faye” rompe com uma ida ao Minnesota do princípio da década de 1950, onde a pequena Tamara assistia aos cultos de sua comunidade do lado de fora, às escondidas da mãe, pianista da congregação. Rachel só fora aceita porque era a única a saber tocar o instrumento, motivo suficiente para que a assembleia fingisse não conhecer seu passado de mulher desquitada e mãe solo, mas quando a garota finalmente toma coragem e entra, sente-se em casa. Tanto que é arrebatada por um espírito benfazejo e ora em línguas, o que o pastor considera como a visita do próprio Cristo.
Dez anos depois, ela está na Universidade Bíblica da Carolina do Norte, na qual também estuda um rapaz alto, magro e bastante formal em seu colete de lã e botas bem-engraxadas. James Orsen Bakker apresenta um seminário sobre as passagens das Escrituras sobre as quais cerca de quinze anos mais tarde fundamentará seu ministério, todas meticulosamente distorcidas para que pareçam acomodar a discrepância entre riqueza material e a evolução da alma. Tammy Faye encanta-se com Jim, e o diretor tira bom proveito de uma cena em que os dois conversam num gramado em frente ao pavilhão de salas, até que ela o tira para dançar, entoando um hino a plenos pulmões.
Quando já estão em franca subida como dois dos mais influentes televangelistas dos Estados Unidos — ele a frente dela, que se diga —, Tammy Faye é a mulher exuberante que passou à História, ajudando o marido Jim a negociar com tubarões da programação gospel como Jerry Falwell, o reverendo interpretado por Vincent D’Onofrio, o futuro adversário na Praise the Lord, a emissora fundada pelo casal, que não poderão vencer. Jessica Chastain some por baixo das grossas camadas de maquiagem, um trunfo a que recorre a fim de compor sua protagonista, enquanto Andrew Garfield aos poucos dá espaço para que a verdadeira estrela aqui brilhe, embora a Rachel de Cherry Jones, excelente, venha e vá ao longo dos 126 minutos, até a despedida abrupta. Num dos lances mais notáveis do filme, Showalter recria a célebre entrevista de Tammy Faye com Steve Pieters (1952-2023), um pastor gay que havia contraído o HIV. Em 1985, a aids era mais que um estigma: era uma sentença de morte com a qual pacientes do mundo inteiro, homens em sua maioria, teriam de conviver pelos próximos anos. Coincidência ou não, pouco depois o império dos Bakker rui fragorosamente.
A meia hora final presta-se a um tributo melancólico da carreira de Tammy Faye, repassando sua debacle econômica e a humilhação pública pelo escândalo sexual envolvendo Jim, um funcionário da PTL e uma “colaboradora”, como eles chamavam aqueles que dirigiam-lhes ofertas. Chastain faz jus ao Oscar de Melhor Atriz pelo papel ao ter sempre uma carta na manga e reacender o interesse da audiência pela personagem, ainda que um vídeo nos estertores do filme soe como uma peça publicitária e macule significativamente o que se assistira até ali. Esse deslize hagiográfico, contudo, não é capaz de apagar a ótima impressão deixada por “Os Olhos de Tammy Faye”, uma metáfora assumidamente estilística sobre falsos profetas e seus ardis, mas também solidariedade, estoicismo e tolerância.
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