No doloroso transcurso da vida, vamos arrumando as gavetas em que escondemos más lembranças, sonhos gorados, tristezas de toda sorte, e as fechamos com cuidado, receando que alguém as profane. Depois de 8 de maio de 1945, Gunnar Sønsteby (1918-2012) nunca mais abriu sua gaveta mais secreta, e deixou que lá repousassem todas as recordações sobre um dos tempos mais ignóbeis da História da humanidade, dos quais foi forçado a participar.
Lançando mão de todos os recursos que pode, John Andreas Andersen repassa lances decisivos da vida de Sønsteby em “Número 24”, um drama de guerra cheio de maravilhosas idiossincrasias. Baseado na autobiografia homônima de um dos grandes heróis da Noruega, o filme de Andersen tenta desbastar as camadas obscuras do protagonista, um simpático velhinho padecendo a lidar com culpas e remorsos, mas ciente de que fez o que era certo.
O roteiro de Espen Lauritzen von Ibenfeldt e Erlend Loe volta a Rjukan, no centro-sul da Noruega, onde Sønsteby experimenta as angústias da adolescência em longas caminhadas pela floresta em neve. Paulatinamente, os nazistas dão sinais de que pretendem avançar pelos rincões da Europa, queimando bibliotecas sob a desculpa de salvar o mundo do comunismo dispondo da cumplicidade de moços ingênuos ou ambiciosos.
Em 1937, Hitler era apenas uma nuvem agourenta a pairar sobre a política, malgrado soubesse cultivar simpatias e arregimentasse fileiras de novos adeptos a sua ideologia torpe, mas passados três anos, em 9 de abril de 1940, a loucura sanguinária do nacional-socialismo alemão chegava ao reino imaginário de Sønsteby, e alguns dias mais tarde, o aspirante a contador era obrigado a tomar a atitude que mudaria seu cotidiano e a história de sua pátria.
O diretor opta pela linguagem indireta para reproduzir o pensamento e as declarações de Sønsteby, que apresenta uma palestra informal na escola onde estudara setenta anos antes, numa cadência dinâmica que lhe permite ir e vir no tempo, com uma pletora de cenas ricas em detalhes. Erik Hivju se alterna no papel com Sjur Vatne Brean, que catalisa a tensão e o heroico romantismo do personagem central, que parece desde sempre convicto quanto a abandonar seu emprego burocrático num escritório comercial e engrossar a Resistência, a guerrilha paramilitar que partia para cima das tropas alemãs do jeito que as contingências deixavam.
Andersen não se furta a abordar os dilemas morais do Número 24, o codinome sobre o qual Sønsteby passou a ser identificado na organização, e coloca em cena uma suposta sobrinha-bisneta de Erling Solheim, o amigo que o traíra por duzentas mil coroas. Nos derradeiros minutos, Brean e Jakob Maanum Trulsen dotam “Número 24” de uma estranha poesia; é quando se sabe que manter trancadas certas gavetas não adianta. O que existe lá dentro grita.
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