Adaptações literárias sempre carregam a complexa tarefa de transpor o espírito de uma obra para novas mídias, e “Meu Pé de Laranja Lima” exemplifica bem essa dinâmica multifacetada. Publicado em 1968, o romance infantojuvenil de José Mauro de Vasconcelos tornou-se um marco na literatura brasileira, ressoando por gerações. A narrativa ganhou as telas pela primeira vez em 1970, sob a direção de Aurélio Teixeira, e foi revisitada em 2012 por Marcos Bernstein, em uma releitura que busca equilibrar a essência emocional da obra com elementos contemporâneos. A história do pequeno Zezé, um garoto pobre que encontra consolo em seu amigo imaginário, o arbusto do quintal chamado Minguinho, atravessa o tempo ao abordar temas universais como solidão, resiliência e a busca por afeto.
O filme de Bernstein explora com sensibilidade o contraste entre a vida rural e os anseios de quem sonha com algo maior. Zezé, interpretado por João Guilherme Ávila, vive em um rincão mineiro nos anos 1940, deslocando o cenário original do subúrbio carioca. Essa decisão narrativa revela-se acertada, já que o bairro de Bangu, onde o livro se passa, perdeu o contexto bucólico que sustentava a história original. No longa, o protagonista, com sua sagacidade precoce e olhar melancólico, navega por uma infância marcada pela dureza da pobreza e pela ausência emocional dos pais. A relação do menino com Minguinho e, posteriormente, com o Portuga, vivido por José de Abreu, constrói o cerne de uma trama que transita entre a fantasia e a dura realidade.
Bernstein confere à história uma camada de maturidade ao enfatizar a complexidade das relações humanas. A amizade de Zezé com o Portuga, um homem solitário que encontra no garoto um eco de sua paternidade perdida, é apresentada de forma ambígua, alimentando reflexões sobre confiança e fragilidade emocional. Mesmo com as nuances que poderiam gerar desconforto, a narrativa consegue preservar a inocência essencial ao relacionamento dos dois personagens. Ainda assim, o desempenho irregular de José de Abreu e a falta de consistência no sotaque do Portuga trazem fragilidades ao longa, dificultando a completa imersão na relação paternal proposta.
A fotografia de Gustavo Hadba é um dos pontos altos da produção, destacando com precisão os contrastes emocionais e geográficos da história. O ambiente doméstico de Zezé, quase sempre envolto em penumbra, parece refletir o peso da ausência e do desamparo que permeiam sua vida. Já os momentos ao ar livre, mais luminosos, evocam a liberdade dos sonhos do garoto, ainda que estes estejam sempre à beira de se dissipar. O visual não apenas complementa, mas intensifica a atmosfera emocional da narrativa, conduzindo o espectador por uma jornada visualmente impactante.
“Meu Pé de Laranja Lima”, em sua essência, permanece um relato sobre as contradições da infância. Zezé, com sua imaginação fervilhante e sua melancolia precoce, personifica a dicotomia entre a alegria e a dor que marcam essa fase da vida. A escolha de elevar a idade do personagem no filme parece atender a uma necessidade narrativa de aprofundar o drama, embora isso distancie o longa da obra original em certos aspectos. Mesmo com alterações e algumas falhas na execução, a adaptação consegue capturar a universalidade dos temas tratados no livro, conectando gerações ao enfatizar o impacto das relações humanas em um contexto de adversidades.
Em resumo, a abordagem de Bernstein não apenas resgata a força do texto original de Vasconcelos, mas também apresenta uma leitura singular e visualmente expressiva. O longa nos leva a refletir sobre o impacto do ambiente, das relações e da fantasia no desenvolvimento humano, além de nos lembrar que a infância, por mais idealizada que seja, carrega suas próprias sombras. Uma jornada emocional que, mesmo com imperfeições, consegue honrar o legado de uma das histórias mais marcantes da literatura brasileira.
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