A paixão há de continuar humilhando-nos os pobres mortais e firme em seu propósito de nivelar a humanidade por baixo. Sem nenhuma explicação lógica, ficamos todos desnorteados quando o cupido faz das suas, e nem precisa ser conosco. Basta que alguém passe como se a um palmo do chão, com aquela cara de quem viu o tal passarinho verde (ou azul, ou rosa, a depender da preferência), que um contentamento pela alegria do outro se instala, fazendo mais tomados de amor os que já amam e meio invejosos aqueles que ainda buscam a tampa da sua panela.
Mesmo a mais humana das emoções tem seus dias de fracasso e muitas vezes o que parece um amor genuíno, precioso e resistente como o diamante mais raro quebra-se e mostra faces obscuras, que jamais poderiam ser confundidas com o tal fogo que arde sem se ver. “Amor que Sufoca” atesta que qualquer um perde a cabeça diante das várias armadilhas caprichosas do amor, mesmo um equilibrado jovem taiwanês trilhando seu caminho rumo ao sucesso. Arrojado, Liao Ming-yi tem no currículo trabalhos como “I WeirDo” (2020), o primeiro longa da Ásia todo filmado com um telefone, empreitada que rendeu-lhe as indicações para Melhor Novo Diretor e Melhor Fotografia no 57º Golden Horse, uma das premiações em língua chinesa mais importantes do mundo. Com “Amor que Sufoca”, o diretor garante lugar cativo junto aos mais badalados realizadores da indústria cinematográfica asiática hoje.
O infortúnio marca de tal forma a existência dos homens que se algum dia conhecêssemos todos a felicidade, todo tempo e ao longo da vida inteira, decerto teríamos passado a uma outra espécie, quiçá mais evoluída ou nem tanto, mas outra, com muito pouco do que nos definia como homo sapiens sapiens, os homens que sabem que sabem. A humanidade se divide entre os céticos, mas que não deixam de acreditar em milagres — inclusive os que não se materializam nunca — e os cínicos, aqueles que atribuem uma aura de sobrenatural a tudo quanto se passa na Terra. O encontro despretensioso de dois membros de um clube de leitura num café tranquilo é o primeiro movimento de uma relação cheia de idiossincrasias.
O diretor-roteirista parece desprezar seu personagem central e preferir fixar-se nas figuras que o rodeiam, a começar por Pai Chia-chi, uma garota de beleza fria que o encontra a fim de trocarem suas publicações favoritas. A partir daí, Liao está sempre esticando a corda, até que surge o horizonte a possibilidade concreta do mocinho interpretado por Austin Lin e Chia-chi engatarem um romance, desde que ele esteja disposto a suportar as muitas condições impostas pela moça. Ela, uma cristã fervorosa, vegana e hipocondríaca, aproveita-se do fato de que seu pretendente fica sem moradia para convidá-lo a viver com ele. Claro que não poderia dar certo, mas um novo acontecimento trata de liquidar de vez as chances do casal.
Lin Ai-hsuan, uma paixão dos tempos de colégio, volta muito mais bonita, rica e amável como sempre, mesmo que agora apresente-se sob o nome artístico de Kurosawa Yuri. Se o personagem de Lin já não aguentava a paranoia da namorada, sua mania de limpeza, seu hábito de enviar mensagem a cada duas horas e vasculhar seu telefone ao fim do dia, a chegada de Ai-hsuan o instiga a procurar em si as razões de ter se deixado dominar tão bovinamente, e Liao aproveita para elaborar um ligeiro suspense no segundo ato, açulando as personagens femininas uma contra a outra. Chloe Xiang e Nikki Hsieh contornam possíveis acusações de misoginia do diretor em performances mais empenhadas que as de Austin Lin, que se sai melhor na estreia do diretor, quatro anos antes.
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