Às 20h50 de 31 de dezembro de 2024, conferi o bilhete cuidadosamente guardado há dias na bolsa, e estava sacramentado: eu não havia ganhado na Mega da Virada. Ao menos, em alento paradoxal, não acertei nenhum número, afastando a agonia do “quase”. Sem o prêmio, restavam-me, portanto, pouco mais de três horas antes do novo ano para resolver todos os meus problemas nas sementes de uvas, nos gomos de romã e nas sete ondas. Lembrei-me de que estava em Goiás, e sobrou-me apenas a travessa de frutas para preparar o futuro.
Um certo inconformismo pairou no ar por instantes. Nos últimos dias, ao escolher cautelosamente meu jogo, viajei mentalmente (na primeira classe) por todos os desejos que a bolada tiraria do limbo. Comprei apartamento, viajei para o Japão, deletei as planilhas do Excel, dei um Rolex para o meu tio e uma Land Rover para o meu irmão. Cancelei as reuniões, almocei em um estrelado Michelin, salvei todos os cachorros de rua da cidade, presenteei as amizades, adquiri um quadro de Paul Gauguin.
Como poderia a estatística, que aponta chances ínfimas de vitória, preponderar sobre minha intuição de que desta vez iria dar? O horóscopo apontou boas possibilidades, meu coração já pulsava no ritmo da subida do dólar, o dono da lotérica falou que os números eram quentes, uma joaninha apareceu minutos antes do sorteio e, apesar de todos os indícios de que o sonho estava alinhado com os deuses, a petulante probabilidade matemática falou mais alto.
A vida tem dessas… A gente pincela o impossível com cores plausíveis para amenizar o batente constante. Capitaneados pela utopia que nos salva dos dias comuns, buscamos uma nova jornada imaginária com todas as peças para a felicidade plena. Mesmo que a lógica nos diga o contrário, mesmo que já tenhamos perdido mil vezes, mesmo alertados pela rotina de que a fantasia é fugaz, insistimos. Afinal, ao contrário do Rolex, da Land Rover e do Michelin, sonhar não custa nada.
Se não deu certo na roleta da Mega, haverá de dar no giro do ano. No calendário que se inicia, é permitido acreditar que os dias serão melhores, os afetos maiores e a abundância virá a galope. Em cada peça de roupa, em cada ornamento de balão, prato de lentilha e oração está a mágica. Está também no silêncio, no retiro, na reflexão que precede a meia-noite. E ai da astrofísica se disser que essa é apenas uma invenção humana assegurando que no cosmo nada muda no momento da virada. Assim como a esperança tem licença poética para descartar a matemática, os ritos, nesta data, podem ser nossa ciência.
No ano novo é permitido, também, desafiar a linguagem apropriada e lançar mão de todos os clichês surrados e pouco criativos. Vale dizer que é tempo de recomeço e que a boa sorte vem dos fogos de artifício. Vale escrever que serão 365 novas oportunidades, que 2025 é nosso, que estamos trocando a roupa da alma. Vale cantar com as vinhetas da TV, render-se ao auê, descer pra BC (ops, não. Essa já é outra história).
Que mal há no simbolismo das coisas? No fundo, sabemos que tudo continua igual. Mas talvez resida justamente aí o maior lance de sorte: olhar ao redor e perceber que nos abraços dos que amamos, na fartura que já existe e nos sonhos realizados mora o maior, mais piegas e mais verdadeiro dos clichês: já somos milionários. Há mais a permanecer do que a ganhar. Há mais dádivas que infortúnios, mais encantos que barrancos. Mas como seriam oportunos aqueles seis algarismos…