Origem humilde e ambição desmedida são forças que colidem em “Um Homem de Sorte” (2018), um drama dirigido por Bille August que explora os limites entre aspiração e realidade. No centro da narrativa, o protagonista Peter Andreas, filho de um rigoroso vigário, desafia a rigidez do meio que o formou, abandonando a isolada Jutlândia rumo a Copenhague para estudar engenharia. Lá, ele se reinventa como Per, o “sortudo”, determinado a superar as barreiras sociais e alcançar o sucesso. Contudo, a trajetória de Per revela mais que um simples confronto entre classes: trata-se de um mergulho profundo em questões estruturais e emocionais que transcendem o indivíduo, expondo as engrenagens invisíveis de uma sociedade relutante em abrir espaço para o mérito vindo de fora.
O filme é uma adaptação do monumental romance “Lykke-Per”, de Henrik Pontoppidan, vencedor do Nobel de Literatura em 1917. Publicada em oito volumes entre 1898 e 1904, a obra é um exame crítico das tensões entre modernidade e tradição na virada do século 20. August traduz essa densidade literária para a tela com maestria, equilibrando momentos de melodrama com sutilezas narrativas que instigam o espectador. Seu domínio é evidente na forma como conduz a história: enquanto o aspecto emocional predomina, há uma astúcia em sugerir temas profundos sem os explicitar diretamente.
Esben Smed, no papel de Per, entrega uma performance que dá vida ao espírito contraditório do personagem — visionário e obstinado, mas também vulnerável às pressões externas e internas. A genialidade técnica de Per, materializada em um projeto inovador que utiliza vento e água para gerar energia elétrica, representa o otimismo da industrialização emergente. No entanto, a concretização dessa ideia depende de algo que Per não possui: acesso aos círculos da elite e financiamento adequado. É nesse contexto que ele se aproxima de Jakobe Salomon, interpretada de forma brilhante por Katrine Greis-Rosenthal.
Jakobe é uma jovem judia pertencente a uma família rica, mas sua ligação com Per transcende o romance convencional. Enquanto ela busca afirmar sua independência diante das expectativas patriarcais de seu pai, Per enxerga nela uma ponte para validar seus ideais. O relacionamento entre os dois, no entanto, carrega uma inevitabilidade trágica: diferenças religiosas, preconceitos de classe e a recusa de Per em se submeter às convenções sociais tornam a união insustentável. Ainda assim, Jakobe demonstra uma força singular ao romper com as normas de sua família e investir sua herança em projetos altruístas, evidenciando um contraste poderoso com a trajetória solitária de Per.
A cinematografia de Alar Kivilo intensifica o impacto emocional do filme, especialmente em cenas-chave, como a despedida de Per e Jakobe. Cada enquadramento reflete o estado de espírito dos personagens, amplificando os dilemas internos e as complexidades das relações humanas. A sofisticação técnica de August, somada a uma narrativa de rica densidade psicológica e histórica, faz de “Um Homem de Sorte” um marco do cinema contemporâneo.
Mais que um relato de ambição e fracasso, o filme é uma reflexão sobre os custos de desafiar estruturas imutáveis. No final, Per não encontra redenção nas realizações materiais, mas em uma aceitação melancólica de sua condição. Esse desfecho, longe de simplista, é uma prova da capacidade de August de transformar um drama individual em uma poderosa meditação sobre as forças que moldam nossas escolhas e destinos.
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