Lançado em dezembro de 2020 pela Netflix e dirigido por George C. Wolfe, “A Voz Suprema do Blues” rapidamente se consolidou como um marco cinematográfico, conquistando dois prêmios no Oscar: Melhor Maquiagem e Penteado, além de Melhor Figurino. O filme, que também recebeu indicações em outras categorias, ficou marcado especialmente pelas performances arrebatadoras de Viola Davis e Chadwick Boseman, este em sua última aparição nas telas antes de sua morte em agosto de 2020.
Viola Davis entrega uma interpretação magistral no papel de Ma Rainey, uma das pioneiras do blues nos anos 1920, cuja presença dominadora não apenas ecoava em suas músicas, mas também desafiava as barreiras de uma sociedade rigidamente patriarcal e racista. Em cada cena, Davis traduz a complexidade de uma mulher que não apenas conhecia o peso de sua posição no universo musical, mas também exigia respeito e autonomia diante de um sistema que constantemente tentava silenciá-la.
Já Chadwick Boseman, em uma atuação visceral e memorável, interpreta Levee, um trompetista ambicioso e visionário que busca transformar o blues tradicional em algo mais dinâmico e dançante. Enquanto Ma Rainey representa a solidez de uma trajetória já consolidada, Levee personifica a impetuosidade e as frustrações de quem ainda luta por reconhecimento. A dinâmica entre os dois é tensa e magnética, refletindo um conflito entre gerações e estilos artísticos, mas também abordando questões mais profundas como poder, identidade e controle.
Ambientada em um único dia dentro de um estúdio de gravação em Chicago, a trama explora não apenas as tensões entre os músicos, mas também com os produtores que, ao perceberem o potencial comercial de Levee, tentam modernizar o som de Ma Rainey. Contudo, a cantora, plenamente consciente do racismo estrutural que permeia a indústria musical, não cede às pressões comerciais, reafirmando seu controle absoluto sobre sua obra e legado.
Adaptado da peça homônima de August Wilson, também autor de “Um Limite Entre Nós” — outra adaptação cinematográfica estrelada por Viola Davis —, o filme preserva a intensidade dramática e as questões sociais que caracterizam o trabalho de Wilson. Questões como resistência, racismo e poder permeiam o roteiro, que consegue traduzir para as telas a profundidade emocional e a carga simbólica da obra teatral, criando uma experiência densa e impactante.
O cenário, essencialmente claustrofóbico, é propositalmente minimalista, centrado em um edifício de tijolos na Chicago dos anos 1920. Essa limitação espacial é compensada pela riqueza dos detalhes visuais e pela fotografia, que utiliza iluminação teatral para destacar os personagens e seus conflitos. A câmera, frequentemente focada em closes intensos e ângulos que reforçam a hierarquia nas interações, transforma cada cena em um estudo minucioso de poder e vulnerabilidade.
Outro aspecto técnico notável é a maquiagem, que desempenha um papel crucial na narrativa visual. O suor e o brilho nas peles dos personagens não apenas reforçam o calor sufocante do verão em Chicago, mas também simbolizam o peso das lutas enfrentadas por eles, tanto externas quanto internas. Essa atenção aos detalhes traduz-se em uma ambientação que amplifica a tensão e aprofunda a imersão na história.
Embora o enredo se desenrole de forma linear, o verdadeiro impacto do filme reside nos diálogos afiados e na densidade das interações verbais. Cada troca de palavras carrega um peso emocional significativo, expondo as camadas de dor, aspirações e ressentimentos dos personagens. Nesse contexto, as atuações de Viola Davis e Chadwick Boseman elevam a narrativa a um patamar raro, oferecendo performances que são simultaneamente intensas e profundamente humanas.
Viola Davis encarna Ma Rainey com uma força magnética, equilibrando vulnerabilidade e autoritarismo. Sua presença em cena é arrebatadora, demonstrando uma capacidade única de transmitir poder mesmo nos momentos de maior fragilidade. Boseman, por sua vez, entrega uma atuação repleta de energia e emoção, capturando tanto a determinação quanto o desespero de seu personagem com uma intensidade que ressoa muito além da tela.
No conjunto, “A Voz Suprema do Blues” é mais do que um filme sobre música. É uma reflexão profunda sobre resistência, criatividade e o custo pessoal de lutar contra as estruturas opressoras de uma sociedade desigual. Com atuações inesquecíveis e uma narrativa carregada de significado, a obra deixa uma marca indelével, tanto na história do cinema quanto no coração do espectador.
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