Adaptação desafiadora de um dos romances mais complexos do século 20, com 1,5 milhão de exemplares vendidos, está na Netflix Divulgação / Focus Features

Adaptação desafiadora de um dos romances mais complexos do século 20, com 1,5 milhão de exemplares vendidos, está na Netflix

Poucas obras literárias contemporâneas foram adaptadas com tamanha precisão e sensibilidade quanto “Desejo e Reparação”, o elogiado filme de Joe Wright inspirado no romance de Ian McEwan. A complexidade narrativa que atravessa as páginas de McEwan é recriada de maneira meticulosa por Christopher Hampton, cujo roteiro não apenas traduz o texto original, mas amplifica suas nuances emocionais. Publicado em 2001, “Reparação” é uma obra que transita entre tempos e espaços, envolvendo o leitor em uma dinâmica arrojada que desafia as expectativas convencionais de uma narrativa linear. No filme, essa complexidade é potencializada por uma direção visual que mergulha o espectador na Inglaterra de 1935, para depois conduzi-lo aos horrores da Segunda Guerra Mundial e, finalmente, a uma confissão devastadora no presente.

A estrutura fragmentada do longa é uma metáfora para a própria temática central: as cicatrizes do passado e os labirintos da memória. A metalinguagem, elemento chave no romance de McEwan, é habilmente incorporada por Hampton. Isso é evidenciado logo no início, quando “As Provações de Arabella”, uma peça escrita pela jovem Briony Tallis, torna-se o catalisador para os eventos subsequentes. A mansão dos Tallis está em efervescência com os preparativos para um jantar, e a inquieta Briony, interpretada com impressionante maturidade por Saoirse Ronan, é apresentada como uma figura central. A atuação de Ronan confere à personagem uma intensidade que oscila entre a ingenuidade e a manipulação, estabelecendo as bases para a tragédia que se desenrola.

A fotografia de Seamus McGarvey é um dos trunfos do filme, banhando cada cena em uma luz que alterna entre a delicadeza onírica e a brutalidade realista. Um dos momentos mais memoráveis ocorre quando Briony, distraída por uma abelha, observa pela janela uma interação aparentemente idílica entre sua irmã mais velha, Cecilia, e Robbie, o jovem jardineiro da propriedade. Keira Knightley e James McAvoy entregam performances que transcendem o romance clichê, explorando a dinâmica de classe e os desejos reprimidos em uma sociedade rigidamente estratificada. A cena da fonte, cheia de tensão sexual e subtexto, é o prenúncio de um mal-entendido devastador que irá redefinir a vida dos três protagonistas.

Cecilia, criada dentro dos preceitos patriarcais que moldavam as mulheres da época, revela um caráter subversivo ao desafiar as expectativas impostas por sua classe social e pela tradição. Knightley interpreta a personagem com uma sofisticação que combina vulnerabilidade e força, especialmente nas interações com Robbie. McAvoy, por sua vez, confere profundidade ao papel de um homem cuja liberdade e dignidade são esmagadas pelas acusações infundadas de Briony, que testemunha e interpreta erroneamente uma cena na biblioteca da mansão. A participação de Benedict Cumberbatch como Paul Marshall adiciona camadas de ambiguidade moral, culminando em um dos momentos mais incômodos e impactantes do filme.

No segundo ato, o foco se desloca para os campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, onde a direção de Wright alcança um novo patamar de maestria. A cena do plano-sequência em Dunquerque é um marco cinematográfico, capturando a desolação e o caos com uma precisão visceral. Nesse cenário de destruição, a narrativa explora a tentativa de expiação de Robbie e a busca de Briony por redenção. Já adulta, interpretada por Romola Garai, Briony é confrontada pelo peso de suas escolhas e pela impossibilidade de desfazer o dano causado. O reencontro entre os três personagens é retratado com uma tensão crescente, mas também com uma sutil melancolia que prenuncia o desfecho amargo.

O terceiro ato, marcado pela revelação de Vanessa Redgrave como Briony idosa, encerra o filme com um golpe emocional devastador. Em uma confissão que mistura culpa e arrependimento, ela admite que os eventos finais não passaram de uma invenção literária, uma tentativa de oferecer às vítimas da história a paz que a realidade lhes negou. Essa revelação desafia o espectador a reconsiderar a confiabilidade da narrativa e levanta questões profundas sobre verdade, memória e redenção.

“Desejo e Reparação” é, acima de tudo, um estudo sobre as consequências das escolhas humanas e a impossibilidade de reescrever o passado. Com atuações excepcionais, uma direção visual primorosa e uma narrativa que desafia fácil resoluções, o filme de Joe Wright consolida-se como uma das adaptações mais impactantes do cinema recente, deixando o espectador imerso em reflexões sobre culpa, perdão e as sombras da memória.

Filme: Desejo e Reparação
Diretor: Joe Wright
Ano: 2007
Gênero: Drama/Romance
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★