Os 108 minutos mais intensos da sua vida: thriller de sobrevivência da Netflix é uma experiência única Divulgação / Yannis Drakoulidis

Os 108 minutos mais intensos da sua vida: thriller de sobrevivência da Netflix é uma experiência única

A inadequação do homem ao mundo opera como um convite à introspecção, compelindo-o a desvendar sua essência — temores, insuficiências e fragilidades — na busca por uma sabedoria visceral que o alicerce diante de si mesmo. Essa jornada, todavia, passa por uma penosa peregrinação, onde o vasto e implacável cenário ao redor insiste em oferecer pouco além de amargura. A cada passo, fica evidente que o chão, mais frequentemente do que se deseja, só germina ervas que nem alimentam nem alegram. Pressionado por suas escolhas e pela inevitável prestação de contas ao destino, o ser humano transita entre os dilemas cotidianos e um medo do amanhã, muitas vezes derivado de uma luta paranoica entre polos de bem e mal. Essa dinâmica desagua num ciclo interminável de incertezas e sentimentos desconcertantes.

Histórias em que o indivíduo é um estranho em seu próprio espaço, forçado a refugiar-se num universo alheio devido à dominação de forças incontroláveis, perturbam o espírito e revelam o gênio daqueles que traduzem a decadência de sua época em narrativas pungentes. Essas figuras, cientes da impossibilidade de mudanças grandiosas, investem no ofício de transformar o que lhes é possível, ainda que com o cinismo adequado aos tempos. Como o próprio título sugere, é impossível abordar este filme sem lembrar Samuel Beckett, o dramaturgo cuja obra é uma dissecação do homem frente à opressão do mundo — não raramente representada pelo Estado, esmagador e insaciável. Quanto mais o indivíduo almeja a liberdade, mais a estrutura o ensina que até esse ideal lhe escapa.

O roteiro de Ferdinando Cito Filomarino e Kevin A. Rice evoca o absurdo de “Esperando Godot”, de 1952, que emergiu na França pós-guerra, traduzindo o caos da existência pela ótica de Beckett. Na trama, John David Washington interpreta Beckett, um turista em busca de tranquilidade na Grécia. Em meio a um paraíso mediterrâneo, ele e sua parceira April, vivida pela generosa Alicia Vikander, se deparam com uma sucessão de eventos que os coloca sob a mira de uma perseguição implacável. A química entre os dois personagens ressignifica a angústia de Vladimir e Estragon, transformando fuga e desorientação em combustíveis para uma narrativa de crescente tensão.

O filme não se limita à trama de ação e suspense. Ao envolver um estrangeiro, negro, perseguido em território helênico, lança uma reflexão incômoda sobre a natureza humana e suas contradições históricas. A escolha da Grécia, país marcado por um passado de submissão e resistência, não é casual. Contudo, a obra parece transcender a literalidade da perseguição, abraçando o delírio beckettiano em sua essência. Os diretores aproveitam o absurdo e o transfundem em uma crítica mordaz, aliada a um tom ousado que desafia convenções do cinema contemporâneo, resultando numa experiência instigante e provocadora.

Filme: Beckett
Diretor: Ferdinando Cito Filomarino
Ano: 2021
Gênero: Drama/Thriller
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★