Um dos diretores mais ambiciosos da história do cinema, Terrence Malick deseja com “A Árvore da Vida” chegar ao mais oculto do espectador, e para isso desce ao fundo de si mesmo. Malick, um cavoucador das próprias lembranças, parece estar sempre em busca de algo que o desafie, e acha num enredo quase banal um tesouro. O pulo do gato em seu minucioso roteiro é tentar persuadir quem assiste de que a história daquela família — e, por extensão, a sua — poderia muito bem ser a história de qualquer um e, por que não?, a da humanidade mesma. Para chegar lá, amalgama com cuidado requinte e singeleza, muito disso sintetizado na impecável fotografia de Emmanuel Lubezki. Sem dúvida um dos grandes mestres em seu ofício, o mexicano traduz as imagens que só o diretor vê em enquadramentos cartesianos, o que não raro torna as palavras supérfluas. A conexão é antes de qualquer coisa axiomática, intuitiva, feito se partilhássemos todos o mesmo sangue, vermelho e triste.
Os personagens estão em algum lugar do Texas dos anos 1950, em casas amplas de quintais infinitos, onde janelas captam as mensagens do mundo em derredor. É verão, e os três filhos da família O’Brien, todos homens, espalham-se como se também fossem elementos da idílica paisagem, ocupados apenas em aproveitar cada raio de sol — embora as conversas enfarosas dos adultos teimem em alcançar sua inocência. Foi por pouco, mas eu tive a chance de viver esse tempo mágico de prédios sem grades e portas abertas, com moleques vendendo o jornal nas manhãs de domingo e o homem anunciando seu quebra-queixo ao fim da tarde; em sendo assim, Malick alinha-se a León Tolstoi (1828-1910) e fala do universo inteiro ao mirar seu umbigo, e até os azarados que nunca puderam brincar na rua sem medo de bala perdida entendem perfeitamente do que ele está falando e aonde quer chegar.
Malick brinca com a cadência de seu filme, afastando-o do público, a essa altura já completamente enfeitiçado, para voltar a mantê-lo perto por meio das manobras de Lubezki, com quem tornaria a trabalhar em “Amor Pleno” (2012) e “Cavaleiro de Copas” (2015), mas também dispondo de seus personagens como peças num tabuleiro. Sua pedra mais valiosa nesse instante é o Senhor O’Brien de Brad Pitt, que parece ainda mais distante por jamais por um primeiro nome, da mesma forma que qualquer pessoa crescida.
Ostentando um corte militar com cada fio de cabelo no lugar certo e no comprimento adequado, Pitt impõe temor à prole viril, o que explica em parte o que vem a acontecer depois, quando Steve, o irmão mais velho interpretado por Tye Sheridan, vai servir na Guerra do Vietnã (1955-1975) e não volta. Então, o pai deixa a cena e dá lugar a Jack, o caçula, que absorto nas mil encucações típicas da idade, começa a refletir sobre o porquê de Steve não merecer mais estar vivo, presenciando o esplendor da natureza, desde a grande expansão do Big Bang até o morte do último átomo da criatura mais abjeta.
Hunter McCracken catalisa as emoções mais intestinas de Jack e as repassa a Sean Penn, encarregado de reoxigenar a coda da narrativa e esquecer o fim irremediável de tudo e fixar-se na continuação, na imensa cadeia de moléculas de gente que a atmosfera capta e a chuva traz de volta, esse milagre diário no qual nem prestamos atenção. Essa aura mística cabe à Senhora O’Brien encarnada por Jessica Chastain, competente em envolver essa mulher invisibilizada numa significação beatífica, flagrantemente contrária à do vilão de Pitt. Chastain, como se vê em “Os Olhos de Tammy Faye” (2021), a biografia dirigida por Michael Showalter sobre a rainha do televangelismo na América durante os anos 1970 e 1980, soube valer-se desse seu lado, digamos, metafísico.
Tudo quanto se dá no seio dos O’Brien repete-se nos lares dos oito bilhões de habitantes da Terra, e assim seguirá até que não reste mais ninguém. A Árvore da Vida ramifica-se para além do que os olhos pegam, e o filme de Malick documenta isso.
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