Baseado em best seller com 3 milhões de cópias vendidas, história contada por Hitchcock e recontada com Armie Hammer e Lily James, está na Netflix Kerry Brown / Netflix

Baseado em best seller com 3 milhões de cópias vendidas, história contada por Hitchcock e recontada com Armie Hammer e Lily James, está na Netflix

Poucas batalhas são tão ingratas quanto confrontar a memória de um morto. Os vivos, por mais fortes ou autossuficientes que sejam, raramente conseguem competir com a aura idealizada daqueles que partiram, envoltos em uma névoa de perfeição que resiste ao tempo e à verdade. Daphne Du Maurier, com seu olhar minucioso, captura essa dinâmica com primor em “Rebecca – A Mulher Inesquecível”. Publicado em 1938, o romance constrói um retrato perturbador de como a lembrança de uma mulher ausente pode moldar a vida dos que permanecem. Rebecca, embora morta, permeia cada detalhe de Manderley — o icônico palacete onde a história se desenrola —, espreitando entre as frestas das paredes, os monogramas bordados em toalhas e roupas de cama, e, sobretudo, no imaginário de seus habitantes. Invisível, ela é onipresente, inalcançável por qualquer julgamento, eternamente acima do bem e do mal.

O livro tornou-se um sucesso imediato, muito antes de sua célebre adaptação cinematográfica dirigida por Alfred Hitchcock em 1940. No longa, estrelado por Joan Fontaine, Laurence Olivier e Judith Anderson, Hitchcock ampliou a tensão psicológica que Du Maurier tão habilmente insinuou. Curiosamente, já em 1938, o gênio Orson Welles havia dado vida ao texto no rádio, conduzindo o elenco do Mercury Theatre em uma interpretação marcante. A responsabilidade de reinterpretar essa obra monumental recai, agora, sobre Ben Wheatley, que, junto aos roteiristas Anna Waterhouse, Jane Goldman e Joe Shrapnel, busca oferecer uma nova perspectiva sem trair a essência do original.

Fiel ao espírito do romance, a nova adaptação começa evocando a famosa frase de abertura que associa um sonho a Manderley, consolidando o caráter quase sobrenatural do cenário. A narrativa, inicialmente situada em Monte Carlo, apresenta uma jovem de origem humilde, forçada a suportar os caprichos de sua empregadora, a arrogante senhora Van Hopper. Este segmento, além de situar os personagens, insinua uma crítica social à precarização dos trabalhadores na Europa dos anos 1930, um período marcado pela Grande Depressão e pelas tensões que antecederam a Segunda Guerra Mundial. Ann Dowd encarna Van Hopper com uma mistura de frivolidade e desdém, representando a indiferença da elite ao caos sociopolítico que fervilhava à sua volta. Enquanto champanhes são estourados em salões luxuosos, os ecos da crise permanecem abafados pelo jazz contagiante da trilha sonora de Clint Mansell, cuja tonalidade errônea suaviza o tom sombrio que o terceiro ato exige.

É nesse cenário de ostentação e desigualdade que Maxim de Winter, interpretado por Armie Hammer, entra em cena. Aristocrático e misterioso, Maxim encontra na jovem protagonista uma substituta para Rebecca, sua falecida esposa. Após um breve romance, marcado por uma química palpável, ambos se casam e seguem para Manderley, onde a nova senhora de Winter se depara com o legado sufocante de sua predecessora. Lily James, em uma interpretação ousada, reconfigura sua personagem com um vigor que desafia a inocência quase ingênua concebida por Du Maurier. Essa abordagem, embora interessante, arrisca comprometer a vulnerabilidade essencial ao conflito interno da protagonista, um contraste que Joan Fontaine manejou com destreza na versão de Hitchcock.

Kristin Scott Thomas, por sua vez, entrega uma senhora Danvers que transita entre a reverência ao texto original e uma interpretação pessoal poderosa. A governanta, guardiã da memória de Rebecca, torna-se um núcleo de tensão emocional, sugerindo, em nuances, uma devoção que ultrapassa a subordinação profissional. Essa profundidade emocional, sutilmente explorada por Judith Anderson na versão de 1940, aqui ganha novas camadas, ampliando o impacto da personagem.

O embate psicológico atinge seu clímax à medida que a nova senhora de Winter tenta se libertar das garras do passado, personificado na figura de Rebecca e perpetuado pela própria casa. O romance, de tonalidade gótica, mantém sua força atemporal ao explorar temas como identidade, obsessão e poder. A tensão sexual entre Maxim e sua nova esposa, bem como a relação ambígua da senhora Danvers com Rebecca, continuam a ser pilares fundamentais da narrativa, agora revitalizados por interpretações contemporâneas e visuais impactantes.

Embora Ben Wheatley ofereça uma adaptação visualmente deslumbrante, sua direção hesita em capturar completamente a densidade emocional e o subtexto inquietante que tornam “Rebecca” uma obra-prima. Modernizações pontuais, ainda que relevantes, por vezes diluem o peso dramático, sem alcançar o equilíbrio necessário entre inovação e fidelidade. Assim, a nova leitura do clássico de Du Maurier revela-se ambiciosa, mas imperfeita, reafirmando, contudo, a perpetuidade de uma história cuja sombra permanece tão poderosa quanto a memória de Rebecca em Manderley.

Filme: Rebecca
Diretor: Ben Wheatley
Ano: 2021
Gênero: Drama/Suspense
Avaliaçao: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★