O Que Resta a Partir Daqui, de Flávia Braz: o quebra-cabeça de uma tragédia pessoal

O Que Resta a Partir Daqui, de Flávia Braz: o quebra-cabeça de uma tragédia pessoal

Numa mesa da Flip deste ano, que acompanhei me equilibrando nas panturrilhas, o editor da Flávia Braz assim a definiu à plateia que lotava o casarão de Paraty: é a companhia mais desejável em caso de isolamento numa ilha deserta. Como não estamos no ramo de planejamento de naufrágios, podemos nos dar por contentes com a leitura de “O Que Resta a Partir Daqui”. O primeiro romance da escritora paulistana traz tudo que faz dela uma pessoa gostosa de se ter por perto.

A inteligência veloz, manifestada num humor suavemente cáustico, surge em jorros. Nos longos parágrafos, vertidos num ritmo saramaguiano, encontramos universos. Apostos plenos de absurdos, que nos fazem rir de nervoso, se misturam ao desalento, às singelas alegrias, à luta de classes que emana dos pequenos gestos de vingança. A habilidade de Braz se dá na capacidade de observar o patético da existência nesse grau de detalhamento e verter tudo numa prosa eletrizante e coerente. Não senti o desperdício do meu tempo em nenhuma das 200 páginas do romance, editado com esmero pela Aboio.

Flávia Braz
 
O Que Resta a Partir Daqui, de Flávia Braz (Editora Aboio, 200 páginas)

A trama de “O Que Resta a Partir Daqui” se desenvolve a partir da tragédia que é a vida da narradora, uma mulher anônima, formada em Letras, que se vê cuidadora de idosos. Nem o leitor mais glacial fica indiferente ao conjunto de emoções que levaram a protagonista a reagir às maldades da existência, enfurnando-se primeiramente numa clínica, depois numa casa de família burguesa. Dividida entre dois empregos, dá curso a um acerto de contas que não vem ao caso esmiuçar aqui, porque a oferta de elementos em cascata para a compreensão da trama é um dos prazeres da leitura de Flávia Braz.

Há quem possa, apressadamente, se ver imerso num thriller. Seria um sentimento legítimo, mas secundário. O livro, na verdade, faz uma autópsia de violências infelizmente banais, sobretudo para mulheres. É o pai orientado pelo próprio pênis, sofrendo incontinências sexuais diante de um par de pernas hidratadas que lhe cruzam o caminho, negligenciando toda a responsabilidade material e emocional para com os filhos. É o primo abusador, sorrateiro das madrugadas, que funciona como uma espécie de metonímia de homens que transam autocentrados, até “não aguentar mais”, indiferentes ao gozo do outro. É a carreira possível, não a que se sonha. Braz transita por esses contextos pantanosos com cortes temporais e de espaço, que nos fazem ansiar pela próxima camada narrativa.

O romance de Flávia Braz aturde, mas também afaga. São plenas de beleza as passagens da narradora com o irmão, um pré-adolescente de inteligência acanhada, que compensa as ausências no trato passivo-agressivo com a irmã, que só quem cresceu enfronhado em famílias barulhentas consegue dimensionar. Há entre os dois um código de falsa superficialidade, porque só uma intimidade muito genuína prescinde da palavra e se contenta com o corpóreo.

Sou assinante da newsletter “Apagar Para Todos”, com a qual Braz nos presenteia regularmente com crônicas. Ver seu estilo transportado para uma narrativa longa, sem perda da sagacidade, sem concessões às solenidades que um romance poderia exigir, confirma a fala do editor lá em Paraty. Em qualquer gênero literário, essa guria da Mooca é uma bela companhia.