Por mais paradoxal que possa soar, distopias se prestam a um alívio para espíritos menos conformados com o caos que reina no mundo desde o princípio dos tempos. A desordem fundamental que perpassa a vida do homem na Terra ainda não alcançou o estado de tétrico refinamento exibido com ostentação em produções de todos os gêneros, o que não quer dizer, definitivamente, que nossa situação seja confortável, ou mesmo admissível. O fim do mundo continua a ser um fetiche avassalador. É o que se pode constatar em “Batem à Porta”, uma das mais recentes produções assinadas por M. Night Shyamalan, um mestre no assunto.
Com “A Vila” (2004), “A Dama na Água” (2006), “Fim dos Tempos” (2008) e “O Último Mestre do Ar” (2010), todos fracassos de crítica e de público, Shyamalan foi erigindo uma carreira forjada em suas impressões acerca do ocaso irremediável de tudo, e, por evidente, cada um tem sua própria ideia sobre o cataclismo que ainda há de aniquilar-nos de uma vez para sempre. Baseado no romance de terror “A Cabana no Fim do Mundo” (2018), de Paul Tremblay, o roteiro de Shyamalan e Steve Desmond assinala essa luta entre as muitas forças diabólicas que cercam quem imagina estar isolado o bastante para usufruir sua vida sem ser incomodado. Uma ideia cheia dos riscos que o diretor explora como poucos.
Se até o presente momento não chegamos ao fundo do poço moral e econômico que nos aguarda e nos atrai, como a serpente que enfeitiça o camundongo e o devora sem ao menos ter de dar o bote, é só porque alguma força superior se compadece de nós, se penaliza dos infelizes já alijados do mínimo de que se necessita para uma existência suportável e permite que sigamos cada qual na sua agonia até que nos colha a morte, única solução para tantos daqueles há muito tomados pelo desalento e pelo desespero. De quando em quando, tudo o que a velha musa canta tem de cessar; nessa hora, passamos a nutrir novos anseios, a nos queixar de outras carências e a roda viva das humanas misérias se perpetua como o esperado.
Shyamalan discorre sobre o absurdo da existência valendo-se de uma gangue de tipos exóticos que invade uma cabana isolada no campo, onde uma família atípica de dois pais e uma filha passam as férias. Leonard, o líder do grupo interpretado por Dave Bautista, já havia se aproximado de Wenling, a filha adotiva de Eric e Andrew, quando a menina caçava gafanhotos no bosque, uma referência quase ingênua a uma das pragas que infestaram a Terra segundo um relato bíblico. Aos poucos, o diretor vai deslindando a possível relação entre Leonard e seus comandados com uma seita extremista, deixando que Dave Bautista conduza o show em alternância com Jonathan Groff, Ben Aldridge e, claro, a adorável Kristen Cui, cuja personagem traz as guinadas do livro com que Shyamalan, um dos cineastas que melhor sabe tirar proveito das emoções mais primitivas da audiência, se regala. “Batem à Porta” é um banquete para quem gosta de ver além do que parece real.
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