A cultura pop raramente conheceu talentos com o valor de Clint Eastwood. Alma do faroeste e do próprio cinema americano por excelência, Eastwood coloca no bolso mocinhos, vilões e todos os super-heróis que certos estúdios empurram goela do espectador abaixo, sem que este sequer pigarreie. Como tudo que é bom dura pouco, “Jurado Nº2” pode ser o canto do cisne de um artista que fez com que o público visse em suas histórias a mesma paixão que ele, malgrado, por óbvio, não acertasse sempre.
Aqui, aos 94 anos e meio, Eastwood acerta na mosca ao apostar suas possíveis últimas fichas num drama de tribunal a um só tempo inteligente, charmoso, implacável com o politicamente correto e que crê, com a licença do trocadilho, na capacidade de julgamento da plateia, síntese do que o ator e diretor sempre representara. Lamentavelmente, o suposto adeus profissional de Eastwood chega sem glamour e até desrespeitoso, e “Jurado Nº2” foi direto para as plataformas de streaming, longe do calor das salas de exibição, como ele decerto preferiria. Sinal de um tempo estranho, que abre alas para o descartável e pretere o que merecia ir para o trono.
Justin Kemp só queria cuidar da esposa, Allison Crewson, no final do terceiro trimestre de gestação, mas é convocado para integrar o júri de um caso cheio de arestas. O roteiro caudaloso de Jonathan Abrams menciona a exuberância indomável de Savannah, no litoral da Geórgia, como uma ironia que provoca quem assiste sem trégua, emulando o efeito de “Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal” (1997). Quase todos os 114 minutos do longa desenrolam-se entre a corte e a sala de deliberação dos jurados, com uma rápida exceção, primeiro ainda no início e depois numa cena em que o diretor de fotografia Yves Bélanger aproveita a luz natural de um dia de sol típico do sudeste dos Estados Unidos para, aí, sim, contrapor a neurose que assola aquelas treze pessoas à vida que continua para além das paredes do tribunal. Enquanto isso, Justin, o jurado número dois, guarda detalhes sobre o crime que só ele mesmo sabe, a cereja do bolo que Eastwood serve aos pouquinhos.
Uma sucessão de flashbacks volta a uma noite num honkytonk de beira de estrada aonde James Michael Sythe e a namorada, Kendall Carter, foram para beber e petiscar alguma coisa. Gabriel Basso e Francesca Fisher-Eastwood, filha do diretor com a britânica Frances Fisher, protagonizam o filme dentro do filme, abrindo para a audiência a briga que dá azo ao que se tem na narrativa central. Ela quer morar com James, vem falando sobre isso há meses, mas ele nunca corresponde; os dois se acusam, atacam-se, ela sai pela noite, sozinha, ele continua no bar por um instante e na manhã seguinte Kendall aparece morta, embaixo da ponte que cobre um trecho do córrego que alimenta o rio Savannah. A certa altura, fica-se sabendo que Justin, alcoólatra em recuperação, estivera na mesa ao lado, passando o indicador pela borda do copo de uísque puro enquanto digeria o aborto dos gêmeos, da gravidez anterior de Allison.
Depois que esmiúça os motivos que levaram Justin e as outras doze pessoas a perderem horas de lazer e de trabalho, Eastwood fixa-se na apreciação do caso, intercalando esses momentos com as sessões em que apresenta os membros do júri. Entre esses, está Harold, um investigador aposentado que agora usufrui do clima ameno da Geórgia ganhando a vida com a esposa como donos de uma floricultura. É justo ele quem fareja o possível envolvimento de Justin na morte de Kendall, mas a solução deus ex machina do diretor trata de eliminar Harold do jogo, mesmo que J.K. Simmons, como sói acontecer, supere as expectativas num papel ingrato. Quando o enredo volta para o salão principal, presidido pela juíza Thelma Stewart de Amy Aquino, o circo está armado: Faith Killebrew, a promotora interpretada por Toni Collette, precisa condenar James se quiser o cargo de procuradora estadual, ao passo que Eric Resnick, o advogado do réu vivido por Chris Messina, pode sair bastante chamuscado se não o absolver.
“Jurado Nº2” é um dos trabalhos em que Eastwood, um dos cineastas mais obcecados com o poder que as escolhas têm quanto a transformar para o bem ou, especialmente, para o mal a vida do ser humano, explicita seu niilismo de maneira mais crua. Todos aqui são canalhas, embalando sua maldade com a seda colorida dos bons propósitos — que, na verdade, ocultam o egoísmo mais grosseiro. Nicholas Hoult capta o espírito pusilânime de seu protagonista e faz de Justin o mágico que vai tirando da cartola toda a sorte de truques para que ninguém perceba seu paletó roto. Da mesma forma, a Allison de Zoey Deutch quase engana recorrendo a seu rostinho angelical, mas deixa a máscara cair ao aceitar participar da farsa urdida pelo cônjuge. O diretor aprimora bons argumentos delineados no quase esquecido “O Caso Richard Jewell” (2019), deixando uma ponta de esperança no final aberto, quando Faith parece disposta a jogar tudo para o alto por justiça, e mais ainda, pela verdade. Clint Eastwood fará falta.
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