Pouco antes das luzes se apagarem na sala de cinema, um homem ajeita-se com dificuldade na poltrona, antecipando o desconforto que “A Baleia” trará. Para ele, o filme ecoa uma metalinguagem involuntária, um choque comparável às práticas terapêuticas brutais do início do século 20. Com metade do peso do protagonista, e após enfrentar a fome em uma Cidade Maravilhosa que não perdoa, como cantava Raul Seixas em “Ouro de Tolo”, ele decide: algo precisa mudar. Darren Aronofsky, diretor cujo nome é sinônimo de intensidade emocional, novamente conduz sua audiência a territórios desconfortáveis e profundamente humanos. “A Baleia” é uma obra que provoca repulsa e fascínio em igual medida, um reflexo cru da existência.
Charlie, interpretado por Brendan Fraser, é um professor de literatura aprisionado em seu corpo de 272 quilos. Sua vida transcorre em reclusão, limitada a um pequeno apartamento em Idaho, cuja atmosfera sufocante é magistralmente capturada pela fotografia de Matthew Libatique. Por trás da tela de suas aulas online, sua voz surge como um quadrado preto, uma presença simbólica de sua invisibilidade social. Fora dessas aulas, Charlie se entrega a compulsões alimentares desenfreadas: frango frito e sanduíches de almôndega devorados com urgência, enquanto navega por pesquisas mórbidas sobre sua condição.
Baseado na peça homônima de Samuel D. Hunter, o roteiro adapta com precisão os temas de isolamento, culpa e redenção. A claustrofobia física e emocional de Charlie ganha ainda mais peso com a abordagem intimista de Aronofsky, que não hesita em expor o protagonista em seus momentos mais vulneráveis. Uma dessas cenas o mostra consumido por um onanismo alimentado por pornografia gay, um ato tão descontrolado que quase culmina em sua morte. Apesar disso, o filme não se limita ao grotesco. A entrada de personagens como Liz, uma enfermeira e amiga de longa data, e Ellie, sua filha distante, traz camadas de complexidade ao enredo.
Liz, vivida por Hong Chau, é o suporte emocional e prático de Charlie, salvando-o de episódios autodestrutivos. Sua presença equilibra a trama, mostrando um amor que transcende os limites convencionais. Ellie, por outro lado, interpretada com intensidade por Sadie Sink, desafia e humaniza o pai em igual medida, expondo rachaduras em suas defesas emocionais. A dinâmica entre essas figuras tece um retrato doloroso, mas belo, de relações humanas.
O simbolismo literário é um componente-chave. A obsessão de Charlie com um ensaio estudantil sobre “Moby Dick” permeia o filme, funcionando como metáfora para sua luta contra o vazio existencial. Ao mesmo tempo, a decisão de Aronofsky em escalar Brendan Fraser, usando enchimentos e próteses para transformar sua aparência, gerou críticas. Contudo, o trabalho da equipe de maquiagem, premiado com o Oscar, e a performance visceral de Fraser transcendem quaisquer polêmicas, entregando uma caracterização que é tanto física quanto emocional.
Fraser ganhou o Oscar de Melhor Ator, mas o sucesso de “A Baleia” é coletivo: Hong Chau e Sadie Sink complementam sua performance com profundidade e nuance, enquanto Aronofsky orquestra tudo com maestria. O resultado é um filme que, embora difícil de assistir, é impossível de ignorar.
Quanto ao espectador que iniciou essa jornada introspectiva, ele sai transformado. De baleia a boto, como era chamado na infância, um passo foi dado. Porque, no fim, a arte também é sobre mudança – ainda que dolorosa.
★★★★★★★★★★