O romancista francês Gustave Flaubert (1821-1880) discorreu sobre a incontornável fragilidade do espírito humano frente às armadilhas que a sorte lhe prepara em muitos de seus textos, como em “Madame Bovary”, por exemplo. No livro, publicado em 1856, Flaubert fala de uma mulher que abandona a si mesma e embarca rumo a outra realidade, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, só por estar apaixonada. Emma passa a ser a senhora Bovary depois de um casamento de conveniência, e então uma pletora de sentimentos os mais vis parece aflorar do mais escuro de sua alma, deixando um rastro de destruição silenciosa. Claude Chabrol (1930-2010) foi quem melhor saiu-se ao verter em imagens a prosa árida e infilmável de Flaubert — melhor que Vincente Minnelli (1903-1986), em 1949, ou Sophie Barthes, em 2014 —, e seu filme parece mesmo voltar à zona rural da França de meados do século 19, esboçando algumas razões para o bovarismo de Bovary, sem, no entanto, condescender com sua vileza essencial.
Quanto à narrativa, nada de muito extravagante. O roteiro do diretor dá a entender que Emma resignara-se quanto a seu destino de solteirona, mas, com muita parcimônia, assim como escreve Flaubert, vêm à superfície os elementos que desautorizam qualquer conclusão precipitada. Os olhos de Emma começam a brilhar diante da possibilidade de tornar-se a esposa de Charles Bovary, o novo médico do vilarejo, não por nenhuma súbita paixão irresistível, mas pela chance de deixar o sítio da família e ir morar na cidade, administrar sua própria casa, olhar vitrines usando vestidos de seda.
O grande acontecimento de sua vida e aquele que puxa as gradativas reviravoltas do enredo é o baile no palacete de um aristocrata local, onde conhece Rodolphe Boulanger, um tipo galanteador e fanfarrão com quem flerta discretamente. Enquanto nada do que importa toma corpo, Chabrol brinca com a história, ora sugerindo queEmma pode ser feliz numa eventual nova relação, ora insinuando, como de fato se passa, que Boulanger não irá além dos folguedos de alcova, uma prerrogativa masculina inquestionável, principalmente nos casos em que a mulher é tão solícita.
O triângulo formado pelos personagens de Jean-François Balmer, Christophe Malavoy e Isabelle Huppertnem tem tanta importância frente a tudo que Flaubert guarda para a última terça parte de seu romance, aproveitado com esmero por Chabrol. “Madame Bovary” é um filme sobre escolhas e as maldições que recaem sobre alguém determinado a bancá-las até o fim. Huppert especializou-se em incorporar figuras femininas vigorosas, porém levianas, que enfrentam a vida com as armas que têm. Esse lado de sua filmografia resta evidente em trabalhos a exemplo de “Um Assunto de Mulheres” (1988), do próprio Chabrol; “A Professora de Piano” (2001), dirigido por Michael Haneke; “Sidonie no Japão” (2023), levado à tela por Élise Girard; ou até mesmo “Amor” (2012), de Haneke, num papel secundário, mas matador.
Pouco depois de publicar “Madame Bovary”, Flaubert, em carta à senhorita Leroyer de Chantepie, uma sua amiga, discorre acerca do quão limitada é humanidade, do quão finitos são os sentidos do homem. No “romance dos romances”, um de seus melhores trabalhos, empreitada que lhe consumira seis anos de aplicação árdua, noites mal dormidas, as mil inquietações de um gênio a perseguir seu intento — a frase perfeita, o tipo irretocável de um personagem — e custara-lhe alucinações nervosas 23 anos antes de sua morte, aos 58 anos, vítima de um derrame cerebral, Flaubert elabora também, a seu modo, um balanço de sua vida até então, exaltando atitudes para se conseguir pegar pelo chifre o bicho feio chamado vida e fazê-lo menos feio e menos indócil. A arte, e, em especial, a literatura eram para ele um meio de suportar a vida. Modestamente, assino embaixo, ainda que eu seja muito, muito menos niilista. E nada Emma Bovary.
★★★★★★★★★★