O mundo ainda era uma mistura caótica e nebulosa em 1946. Tentando se reerguer das sombras da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a humanidade buscava qualquer sinal que indicasse a possibilidade de dias mais leves. Foi nesse cenário de incerteza e fragilidade que surgiu uma narrativa singular: “A Felicidade Não se Compra”.
Lançada naquele ano e atualmente disponível gratuitamente na plataforma de streaming Netmovies, essa obra dirigida por Francesco Rosario Capra (1897-1991), cineasta italiano que se naturalizou americano e chegou aos Estados Unidos em 1903, aos seis anos, trouxe algo inesperado ao cinema. Capra se destacou ao transformar histórias simples em reflexões profundas, mostrando a importância dos indivíduos comuns. Sua filmografia revela um compromisso em explorar o cotidiano de personagens que enfrentam a dureza da vida com resignação e coragem, apostando no esforço individual para superar desafios e encontrar pequenas vitórias.
Antes dessa produção, ele já havia tocado em temas semelhantes em “Aconteceu Naquela Noite” (1934), onde o encontro entre uma herdeira insatisfeita e um jornalista desempregado transforma ambas as vidas, e também em “Adorável Vagabundo” (1941), que explora o suicídio como saída para desventuras, antecipando o impacto emocional que “A Felicidade Não se Compra” viria a alcançar em um mundo pós-guerra mais propenso a refletir sobre sua condição.
Baseado no conto “The Greatest Gift” (“O maior presente” ou “O maior dom”, em tradução livre), escrito por Philip Van Doren Stern (1900-1984) e publicado pela primeira vez em 1939, o filme nos apresenta George Bailey, vivido por James Stewart (1908-1997). Bailey é um pequeno banqueiro falido que, na tentativa desesperada de salvar sua família das dificuldades financeiras, decide tirar a própria vida para que o seguro de vida pague suas dívidas. Às vésperas do Natal, com a mente repleta de angústias e o coração pesado, George chega a uma ponte, pronto para saltar. Contudo, antes de concretizar o ato extremo, é confrontado por Clarence Odbody, interpretado por Henry Travers (1874-1965), um anjo da guarda ainda sem suas asas, que precisa provar seu valor ao tentar demover George dessa decisão trágica. A interação entre os dois personagens se desdobra em uma jornada emocional e filosófica sobre o impacto que cada vida tem no mundo ao seu redor.
O personagem de James Stewart carrega em si uma representação universal da dúvida e do desespero. Sua crise reflete um dilema humano: acreditar que sua existência não tem valor e que sua ausência seria insignificante para aqueles que o cercam. Nesse contexto, o filme se debruça sobre a ideia de que tudo o que fazemos tem um propósito e que estamos todos interligados. A trama introduz uma discussão sobre o “efeito borboleta”, sugerindo que cada ação individual reverbera de maneiras inesperadas na vida dos outros. George Bailey descobre que não pode simplesmente desaparecer, pois sua vida é uma peça essencial no quebra-cabeça universal, que depende do equilíbrio de todos os seus componentes para funcionar adequadamente. Embora o tema tenha sido explorado posteriormente em produções como “Efeito Borboleta” (2004) e “Yesterday” (2019), Capra o aborda de forma pioneira e sensível.
Curiosamente, “A Felicidade Não se Compra” enfrentou dificuldades ao ser lançado. Estreou uma semana após outro grande filme, “Os Melhores Anos de Nossas Vidas”, de William Wyler, que dominou o Oscar com sete prêmios de oito indicações, enquanto o longa de Capra saiu de mãos vazias, apesar de concorrer a cinco categorias. Além disso, uma falha burocrática fez com que o filme caísse em domínio público, permitindo que fosse exibido amplamente sem custos. O que parecia um revés, entretanto, acabou impulsionando sua popularidade, transformando-o em um símbolo da cultura americana. Durante as décadas seguintes, a obra conquistou espaço no imaginário coletivo, especialmente nas pequenas cidades dos Estados Unidos. Foi apenas no início dos anos 1990 que Capra, já idoso, conseguiu recuperar os direitos de sua produção mais grandiosa e querida.
Ao final, o sucesso de Clarence em convencer George a desistir do suicídio transforma “A Felicidade Não se Compra” em uma das narrativas mais tocantes e atemporais do cinema. Embora tenha sido inicialmente rotulado como piegas, o filme transcendeu essas críticas graças à força de seu enredo e ao esforço de críticos que reconheceram seu valor. A história de George Bailey convida o público a refletir sobre o impacto das relações humanas e sobre o que realmente importa na vida. Dinheiro pode comprar muitas coisas, mas jamais será capaz de adquirir o que realmente tem valor.
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