A vida costuma nos pegar desprevenidos, revelando aspectos de nossa fragilidade que preferiríamos ignorar. Esses momentos de confronto nos forçam a encarar a figura que nos observa no espelho, uma presença familiar, mas que esconde camadas de complexidade, dúvidas e contradições. Há, contudo, um grupo de pessoas que não apenas escapa dessa autoanálise, mas também manipula os outros com maestria. Essas figuras são mestres na arte de distorcer a realidade, apropriando-se não apenas de bens materiais, mas também do capital emocional e psicológico daqueles que cruzam seus caminhos.
Mike Barker, em “Uma Garota de Muita Sorte” (2022), adapta o romance homônimo de Jessica Knoll para explorar a dualidade entre aparência e realidade. A obra, um best-seller do “New York Times”, se beneficia da participação da própria autora no roteiro, garantindo que as nuances do texto original sejam traduzidas para a tela. Barker constrói um suspense envolvente, conduzido por Mila Kunis como Ani FaNelli, cuja vida aparentemente perfeita encobre traumas profundos e segredos perturbadores.
Ani é uma mulher que, à primeira vista, possui tudo o que muitos almejam: uma carreira de sucesso como redatora em um grande jornal, um noivo apaixonado e uma autoestima que parece inabalável. No entanto, ao longo da narrativa, fica claro que suas conquistas são mais frágeis do que aparentam. Knoll utiliza sua personagem para expor as contradições de uma vida moldada por expectativas alheias, onde cada decisão está contaminada pelo medo de não corresponder às demandas sociais. Mila Kunis entrega uma interpretação precisa, capturando a tensão entre a fachada confiante de Ani e sua vulnerabilidade interna.
O roteiro examina as estratégias de sobrevivência que Ani adota em seu ambiente profissional e pessoal. Seu sucesso como redatora é sustentado por um delicado equilíbrio entre talento e conformismo, muitas vezes exigindo que ela suprima seus verdadeiros pensamentos ou finja acreditar no oposto do que sente. Essa tensão se torna evidente em momentos como sua tentativa de propor pautas sérias — como a disparidade salarial entre homens e mulheres —, em contraste com sua história de trabalhar com temas considerados superficiais. Barker aproveita essa contradição para aprofundar a complexidade da personagem, enquanto a presença de Luke Harrison, seu noivo interpretado por Finn Wittrock, adiciona uma camada de conflito emocional.
Luke é o arquétipo do parceiro perfeito: encantador, bem-sucedido e atencioso. Contudo, sua relação com Ani é marcada por um descompasso crescente. Quando ele sugere uma mudança para Londres devido a uma nova oportunidade profissional, Ani reage mencionando uma oferta recente do “New York Times”, ilustrando a dinâmica competitiva do casal. Essas cenas revelam o quanto a personagem está presa entre o desejo de agradar e a necessidade de afirmar sua própria identidade. A tensão aumenta com a entrada de Aaron Wickersham (Dalmar Abuzeid), um documentarista que investiga um evento do passado de Ani, trazendo à tona segredos que ela lutava para enterrar.
Barker estrutura o filme de maneira a alternar entre o presente e o passado, explorando como as experiências traumáticas moldaram a protagonista. Em flashbacks, vemos a jovem Ani, interpretada por Chiara Aurelia, lidando com bullying intenso e um incidente chocante que redefine sua vida. Essas cenas adicionam profundidade à narrativa, revelando as raízes de suas inseguranças e a origem de sua nova identidade. A relação com sua mãe, Dina (Connie Britton), também ganha destaque, mostrando como as pressões familiares contribuíram para suas escolhas e para o distanciamento de si mesma.
O desfecho do filme oferece um encerramento satisfatório, ainda que marcado por elementos de fantasia. Ani emerge como uma mulher que, embora longe de ser perfeita, finalmente encontra força para enfrentar seus fantasmas e reivindicar sua autonomia. A jornada de autodescoberta da protagonista é apresentada com uma mistura de crueza e empatia, destacando a complexidade de temas como trauma, superação e o peso das expectativas sociais.
“Uma Garota de Muita Sorte” é uma obra que desafia o espectador a olhar além das aparências e questionar o que realmente significa ter uma vida “ideal”. Com performances poderosas e uma direção sensível, o filme transforma um mistério pessoal em uma reflexão universal sobre identidade e resiliência.
★★★★★★★★★★