Beatriz Sarlo decifrou o tempo presente, o passado e imaginou o futuro

Beatriz Sarlo decifrou o tempo presente, o passado e imaginou o futuro

Mesmo que uma idade avançada indique a proximidade do fim, é surpreendente receber a notícia da morte de uma pessoa admirável. Aos 82 anos, Beatriz Sarlo morreu na sua Buenos Aires. Como vamos agora entender a cultura, a literatura e a política da Argentina sem ela? Justamente sem a pensadora crítica que se dispunha a descer do pedestal dos intelectuais e participava dos mais doidos talk shows da televisão e dos podcasts locais. Ela pegava o presente pelos chifres para entendê-lo.

Admiradora dos escritos de Roland Barthes, Beatriz poderia pegar a onda de renegar o tempo histórico em seus trabalhos. Preferiu o sentido contrário. O olhar dela estava bem colado, por exemplo, às mudanças dos shopping centers e do comércio popular da capital argentina, hoje dominado por asiáticos. De igual forma, a atenção era máxima para a Buenos Aires do começo do século 20, as batalhas intelectuais dos fundadores da Argentina, mas sobretudo para a memória da ditatura militar de seu país (1976-1985).

Beatriz Sarlo
Jorge Luis Borges: um Escritor na Periferia, de Beatriz Sarlo (Iluminuras, 160 páginas, tradução Samuel Titan Jr.)

A pensadora profunda se formou nos anos do “Processo”, que foi o projeto de reforma social, econômica, política e cultural dos militares. Trata-se de um conjunto de ideias e ações que sobrevivem na figura do atual presidente argentino — Beatriz não teria mais saúde para encarar um personagem demolidor de todas as linguagens. De personagens de ficção e de quase ficção, ela havia se tornado uma intérprete inigualável, tendo um paralelo apenas em seu colega Roberto Schwarz, no Brasil.

Quem se interessa por literatura, a sugestão é começar a leitura da obra de Sarlo por “Jorge Luis Borges, um Escritor na Periferia” (1998). No rastro de Schwarz (com sua leitura de Machado de Assis), Beatriz desmonta ponto a ponto a ideia do Borges “universal”, plenamente cosmopolita e despegado da cultura argentina. Surge um autor, isso sim, que inventou uma tradição e foi muito ligado às questões de seu tempo e espaço. Ela ensina a pensar com a própria cabeça, se afastando dos modismos críticos.

Mais recentemente, foi lançada a coletânea “Ensaios de Literatura Argentina”, na qual ela reuniu textos publicados na imprensa e que fazem uma conversa com leitores e leitoras não especializados. A obra vai da escrita fundadora de Sarmiento (autor de “Facundo”) no século 19 até a ficção contemporânea de Juan José Saer (sem dúvida, o autor preferido de Beatriz). O livro “Zona Saer” (2016) foi a homenagem definitiva da crítica para seu objeto de estudo mais recorrente e desafiador.  

Cruzamentos

O método de crítico de Sarlo é muito rico por se ancorar em várias temáticas e formas artísticas. Não é um caldeirão de estilos, mas uma combinação refinada de disciplinas. Sempre de olho num objeto ou tema concreto. No livro “A Máquina Cultural” (1998), ela resgata trechos de três períodos históricos: a incrível anedota familiar de uma professora primária, a escritora Victoria Ocampo com a revista “Sur” (que gerou Borges e Adolfo Bioy Casares) e um grupo de cineastas de vanguarda nos anos 1960.

Os três momentos são “máquinas” que produzem variadas atividades para a educação dos argentinos. Ela criou assim um formato muito próprio de História Cultural, a partir do qual o assunto explica o movimento da sociedade como um todo. A mesma pegada aparece em “A Paixão e a Exceção” (2003), que entrelaça a trajetória de Eva Perón (a péssima atriz que se descobriu uma política brilhante), os contos de Borges que atacam o peronismo e os guerrilheiros dos anos 1960 que se aliaram a Perón.

A curiosidade sem fim de Sarlo transformou a cidade de Buenos Aires em objeto de estudo nos livros “A Modernidade Periférica” (1988) e “A Cidade Vista: Mercadorias e Cultura Urbana” (2009). Antes uma metrópole das mais prósperas do mundo, a capial argentina se transforma no espaço globalizado e degradado. Beatriz saía pelas ruas com uma câmera fotográfica e um caderninho de anotações. O passeio sem muito rumo definido levava a descobertas, por meio de surpresa do que aparecia pela frente.

Esse olho ávido pelo contemporâneo a levou a investigar a família Kirchner e a política na era da internet. O fazer político tornou-se veloz, maleável e extremamente violento. O livro “A Audácia e o Cálculo” (2011) é extraordinário ao identificar os “cibergladiadores” das redes sociais e as origens do ódio que abunda nos meios digitais. A mídia atual foi objeto de dois livros: “Cenas da Vida Pós-moderna: Intelectuais, Arte e Videocultura na Argentina” (1994) e “A Intimidade Pública (2018).

Para Sarlo, o presente necessita sempre do passado e da imaginação do futuro para ser compreendido. Os três tempos funcionam de maneira articulada. É assim que o livro “Tempo Passado” (2007) conecta os acontecimentos do século 20, como os traumas dos campos de concentração da Segundo Guerra, à ditadura argentina. A pergunta dela é como as artes operam na elaboração da memória coletiva e transformam o pesadelo numa expressão compreensível, mais além do sofrimento.

O que vem pela frente   

As Duas Torres: a Cultura Contemporânea Pode Pensar Algo Novo
As Duas Torres: a Cultura Contemporânea Pode Pensar Algo Novo?, de Beatriz Sarlo (ainda sem tradução no Brasil)

A última obra de Sarlo foi “As Duas Torres: a Cultura Contemporânea Pode Pensar Algo Novo?” (2024). Depois de sua morte, trata-se de uma mensagem para futuras gerações. Um recado para mexer com a imaginação de pessoas mergulhadas na simultaneidade da internet, no tédio das repetições e na fragmentação que pode ser boa, mas que iguala tudo numa ideia capenga de democracia. As duas torres se referem ao choque causado pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

O ano de 2024 foi até agora o das perdas de Beatriz Sarlo e de Fredric Jameson. Dois pensadores fundamentais do mundo contemporâneo. Sem eles, contamos ainda com um Terry Eagleton e um Roberto Schwarz (que está finalmente sendo descoberto pelos principais pensadores culturais no mundo). O que todos eles ensinam, é a importância de manter o olhar no contemporâneo. A cultura ainda se move e, por meio dela, as pessoas podem conhecer, conversar e ficar mais inteligentes.