Ao contrário do que reza o senso comum, casamentos podem, sim, vencer o inexorável tempo mantidos por um só dos cônjuges. Precisamente isso é o que se vê em “45 Anos”, um drama de família lançado de longe em longe, talvez porque sejam poucos os que tenham espírito para sentir toda a profundidade de uma história como essa. Desde a primeira sequência, o diretor Andrew Haigh calibra a placidez de campos da zona rural da Inglaterra com a tensão constante a rondar um casal idoso e sem filhos depois que uma questão malresolvida de um passado remoto rompe o gelo e volta à baila. Haigh e o corroteirista David Constantine levam o filme por um emaranhado de lembranças, deixando que aflorem de uma única vez sentimentos os mais contraditórios da parte dos protagonistas, que não demoram a pegar em cheio o espectador, pendendo para um e para outra até um lance decisivo no último instante.
O diretor esmiúça o pacato cotidiano doméstico de Geoff e Kate Mercer nas tomadas em que alterna primeiros planos e planos gerais iluminados por uma luz débil que a fotografia de Lol Crawley transforma numa marca, insinuando possíveis desdobramentos. A falsa serenidade do lar dos Mercer começa a ficar comprometida quando Geoff, o marido, recebe notícias de Katya, uma namorada alemã. Bem, na verdade, o que existe é o cadáver de Katya, que o texto de Haigh e Constantine deixa escapar a certa altura, continua como a moça era há meio século, no momento em que, numa incursão aos Alpes Suíços com Geoff, escorregara e caíra no buraco de uma geleira.
A partir daí, “45 Anos” fornece-nos pistas acerca do futuro imediato do relacionamento de Geoff e Kate: ele quase decepa o dedo tentando consertar a descarga do vaso sanitário, retoma mais uma vez a leitura de Kierkegaard e volta a fumar, enquanto a esposa passeia com o pastor alemão Max entre um e outro intervalo dos preparativos da festa pelo 45º aniversário de matrimônio, celebração bastante singular, confidencia o proprietário do salão onde dar-se-á a festa. Ela explica que eles deveriam ter comemorado as bodas de esmeralda, cinco anos antes, não fosse Geoff ter precisado de uma cirurgia de ponte de safena depois de um ataque do coração. Fica claro que o cristal se partiu.
O longa segue nesse movimento dialético. Depois de um acesso de romantismo, Geoff leva a esposa para a cama, mas não abre os olhos enquanto os dois transam. Passados alguns minutos, Kate acorda e o surpreende vasculhando o sótão, um santuário onde dormem álbuns de fotografias e cartas melosas que eternizam o amor de Geoff e Katya, e embora Kate saiba que é inútil competir com uma rival jovem para sempre, a deslealdade do companheiro de uma vida, incapaz de virar a página e covarde o bastante para envolvê-la numa estranha adoração à morta, flutuando sobre eles, é uma revelação deveras amarga.
Haigh não para de dar sinais do que quer que pensemos, usando para isso os vários dotes de seus atores principais. Ao passo que Kate não sai de seu contentamento angustiado, mais e mais óbvio mediante os olhares furtivos de Charlotte Rampling, Geoff parece nem dar-se conta de quanta mágoa provoca nessa mulher, cinismo que Tom Courtenay reforça com a voz morbidamente tranquila dos canalhas desonestos. Para quem está curioso, Kate não abandona os planos da festa. Mas ao dançar com Geoff ao som de “Smoke Gets in Your Eyes” (1959), dos Platters, percebe, afinal, que aquele homem nunca foi seu. Que sua vida nunca foi sua.
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