Felicidade interna bruta

Felicidade interna bruta

Felicidade é ter alta hospitalar e ser recebido em casa pelo cachorro. É descer o morro lambendo um sorvete tipo americano sem ser alvejado por uma bala perdida. Felicidade é a dádiva de quitar uma dívida impagável. É ter a sorte memorável de encontrar a sua alma gêmea sem sequer ter jogado na loteria. Felicidade é trocar palavras com uma doida varrida. É manter sanidade mental mínima para não ser moído pelas catracas da roda viva. Felicidade é escrever e contar histórias para quem se dispõe a ouvi-las. É mergulhar nas águas límpidas de um rio despoluído que corta a cidade. Felicidade é cortar relações com gente fascista. É velar o feioso cadáver da fome servindo um banquete para milhões de talheres. Felicidade é a erradicação completa da pobreza de espírito. Felicidade são as mulheres se aprontando para sair de casa. É deitar sobre um lençol limpo que cheira à lavanda e à esperança por dias melhores. Felicidade é ser acordado por chuva ou por passarinho. É se aninhar em colo de mãe. Felicidade é quando param de jogar bombas sobre a cidade que a gente mora. É enxergar a bandeira da Cruz Vermelha flamulando no teto de um jipe que surge no horizonte. Felicidade é deixar de ser estuprada. É arrumar um namorado, arrumar uma namorada, casar ou não casar, ter filhos ou não ter filhos, de preferência meninas que não serão violentadas pelos meninos de hoje, os homens do futuro. Felicidade é se libertar do sofrimento ao deixar de esconder a própria sexualidade. Felicidade é lavar o carro e cortar a grama e botar o lixo pra fora e se contentar com a singeleza dos atos mais corriqueiros. Felicidade é quando a vizinha devolve a bola que caiu sobre o muro. São as noviças caiando na gandaia numa festa no convento. Felicidade é colocar o rosto para fora do carro só para sentir o vento. É fisgar uma piaba e sair do coma e comer bife a cavalo e galopar sobre os novos sonhos e ganhar um abraço como presente. Felicidade é não se prender ao excesso de passado. É brincar com os filhos, desconectá-los das telas para que voltem a viver expectativas positivas sobre a fada do dente. Felicidade é ficar velho sem ficar demente. É fazer sexo aos 80 se sentir vontade e voltar à cidade onde nasceu se sentir saudade. Felicidade é voltar, é ir e é ficar. Felicidade é se recuperar de um estado crítico de saúde e voltar a andar, a tomar banho sozinho, a tomar chope com colarinho, a varar a noite contando piadas, divertindo pessoas e rindo da própria desgraça. Felicidade é achar graça em tudo, inclusive, em macaco, praia, carro, jornal, tobogã e Raul Seixas. Felicidade é voltar a pagar qualquer coisa com dinheiro em espécie desde que ficou falido. Felicidade é um ato de resistência do ser humano. É ir à igreja aos domingos, cantar num coral e questionar se Deus existe. Felicidade é colocar em xeque a sapiência do velho lama. É subir na vida sem subir nas pessoas, carregar a namorada na bicicleta, adquirir casa própria e morar sozinho ou acompanhado tanto faz até que a morte nos una. Felicidade, de vez em quanto, mas só de vez em quando, é morrer.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.