Há duas formas de se apreender o russo “Leviatã”, ganhador do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2014. A primeira, à luz da Bíblia; segundo o “Leviatã”, um de seus livros, o homem era assombrado por uma criatura monstruosa que habitava os mares, parábola que ensinava que ninguém deveria se impor além de seus domínios. A outra, muito mais óbvia, é tomando-se por base a sociologia, mais precisamente o livro homônimo do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que por seu turno retirou das Escrituras a inspiração para o nome de seu livro mais célebre. Andrey Zvyagintsev recorre a Hobbes para contar a agonia de um homem, na luta solitária mais difícil de sua vida. O diretor e o corroteirista Oleg Negin deslindam as situações absurdas que este Dom Quixote enfrenta com dignidade, até que impedimentos de outra ordem, mais viscerais, arrasam-no de uma vez por todas.
“A vida é solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”, disse Hobbes no seu “Leviatã” (1651). Casual ou não, a dado momento, o espectador se depara com um imenso esqueleto de baleia numa praia do deslumbrante litoral da Rússia, o que demonstra que nem o homem deve se meter nas profundezas do oceano nem as feras marinhas, por mais grandiosas que sejam, podem se atrever a habitar a Terra. O mundo é uma ruína em progresso e numa cidadezinha isolada nas cercanias do Mar de Barents, Kolya compra uma briga com Vadim, o prefeito corrupto, para não perder a casa em que mora com a família. Ele sabe que sozinho será quase impossível desvencilhar-se do bandidão, portanto considera justo usar as mesmas armas que ele. Procura o irmão, Dmitriy, advogado influente em Moscou, que vai se valer de seus bons contatos para descobrir os podres de Vadim. Mas nem ele é digno de sua confiança.
O “Leviatã” de Zvyagintsev reafirma os irmãos mais velhos: o homem é corruptível por natureza, todos temos um preço, e quem jura de pés juntos que não é o primeiro a se vender, muito mais barato do que pensava. Numa Rússia ainda completamente deslocada mais de trinta anos depois do comunismo ter dado seu suspiro final, o que os prédios públicos têm de suntuosos têm de inúteis. O cidadão comum sabe que se não rezar pela cartilha do mandatário de plantão — e eles querem estender esse plantão ad aeternum — nada feito: está condenado a vagar de uma repartição para a outra, sem nunca liquidar suas pendências, à mercê de funcionários que criam dificuldades a fim de vender facilidades, até que os prazos se esgotem e já não reste mais nada a se fazer. Aleksey Serebryakov encarna esse incessante desejo humano de adequar-se, malgrado tudo em volta seja hostilidade e podridão. O anti-herói vivido por Vladimir Vdovichenkov,contudo, ratifica outra das sentenças matadoras de Hobbes. Sim, o homem é seu próprio lobo.
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