Toda a história do cinema, e da cultura pop por extensão, poderia ser radicalmente diferente se os super-heróis tivessem carta branca para cometer atrocidades em nome da justiça. Qualquer criança, em sua inocência, sabe que esses seres meio-humanos, meio-fantásticos — inspirados em morcegos, aracnídeos, felinos ou criaturas marinhas — passam boa parte de suas existências tentando escapar de traumas que mal conseguem compreender. Por isso, enredos como o de “Deadpool e Wolverine” não são apenas plausíveis: são quase inevitáveis.
Sob a direção de Shawn Levy, o filme se insere na tradição das melhores histórias do gênero. Os personagens são cuidadosamente esculpidos dentro de uma narrativa em que se encontram envolvidos em um conflito de solução aparentemente inalcançável. O protagonista — com habilidades que ultrapassam em muito as de um ser comum — detém o poder de resolver cada dilema com um misto de brutalidade e humor ácido. Levy une dois ícones da Marvel, criando um desfile de batalhas frenéticas onde o sarcasmo, a metalinguagem e a sátira se sobressaem a qualquer legado estúdio em decadência.
Wade Wilson, o mercenário tagarela, e James Howlett, o mal-humorado Wolverine, atravessam um espaço desértico apelidado de “Vazio”. Ali, entre dunas e ruínas, surgem pistas da absorção da Fox pela Disney, como um logotipo semi-enterrado na areia. Esse cenário, regido pela Cassandra Nova de Emma Corrin — cuja arrogância rivaliza com a do irmão gêmeo, Charles Xavier — é palco de um roteiro escrito por Rhett Reese, Ryan Reynolds e Paul Wernick, que aproveita cada cena para inserir piadas mordazes sobre SHIELD, Homem-Aranha e outras franquias.
Mais do que apenas uma coleção de referências, essas provocações funcionam como uma crítica divertida e ácida à incessante produção de conteúdo da cultura pop. A cada ano, toneladas de “lixo fabuloso” são despejadas sobre o público, e o filme não hesita em expor esse paradoxo com um humor afiado.
Para os que não são entusiastas das franquias de super-heróis, as referências à TVA (“Autoridade de Variância Temporal”) podem soar como um emaranhado indecifrado. Contudo, a parceria entre Ryan Reynolds, com seu sarcasmo inconfundível, e Hugh Jackman, na pele do soturno Wolverine, é tão eletrizante que é difícil resistir a essa viagem insana que lembra os desvarios de “Mad Max”.
Shawn Levy orquestra o caos com maestria, transformando cada piada ácida e cada cena de luta em uma sátira afiada do gênero. “Deadpool e Wolverine” é uma celebração anárquica dos super-heróis, onde o maior poder não é a força bruta, mas a capacidade de rir de si mesmo e do mundo à sua volta.
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