Um pecador contempla sua imagem no espelho de uma atração circense numa das primeiras cenas de “O Beco do Pesadelo”, um dos filmes mais introspectivos de um dos diretores mais neoconcretos do cinema. Não, Guillermo del Toro não deixou de quina o terror fantástico, mas em seu 19º longa faz as exuberantes alegorias que costuma usar dobrarem-se às coisas que não aparecem de imediato, quando aparecem. Aqui, Del Toro continua a levar a audiência por uma viagem metafísica, delirante e cheia de revelações ao universo de tipos exóticos, repulsivos e miseráveis que foram se tornando a marca registrada de uma carreira que não admite obviedades, mas sua adaptação do romance homônimo publicado por William Lindsay Gresham (1909-1962) em 1946 intenta também fomentar uma reflexão acerca da brevidade do existir e dos expedientes absurdos de que valem-se alguns para ganhar a vida. Muito disso parece sair da tela e espocar no colo do público, entre francamente maravilhado e confuso diante de ocorrências a um só tempo absurdas e tão realistas.
Nos anos 1930, Stanton Carlisle vaga pelo mundo até chegar ao circo de Clem Hoately, e Bradley Cooper e Willem Dafoe dividem as melhores cenas desse prólogo rico dos detalhes que o design de produção de Tamara Deverell sublinha, carregando nos tons escuros de verde e de vermelho. Em “O Beco das Almas Perdidas” (1947), a versão do livro de Gresham a cargo de Edmund Goulding (1891-1959), já se notava essa vontade de apelar-se ao visual para que o espectador compreendesse as entrelinhas da história; contudo, passadas mais de sete décadas, a fotografia de Dan Laustsen, um colaborador habitual de Del Toro, cerca-se de toda a tecnologia que pode a fim de imprimir sobre os ambientes uma aura fantasmagórica, enquanto certos personagens quase cintilam nos vários momentos de trevas. É o caso de Molly Cahill, que no palco incorpora Electra, a Mulher-Raio, que “suporta” choques de milhares de volts assessorada por Major, o anão, de Mark Povinelli. Claro que se trata de uma representação plena dos truques conhecidos por quem é do ramo — e que não deixam de reforçar preconceitos, como se dá com um suposto monstro devorador de frangos que não passa de um bêbado abandonado pela família.
No terceiro ato, o roteiro de Del Toro e Kim Morgan debruça-se sobre a possibilidade de Stan, que aprende direitinho as vigarices de Hoately e planeja colocá-las em prática em Buffalo, Nova York, sem contar com uma pedra em seu caminho, uma pedra loura e inteligente chamada Lilith Ritter. Com o refinamento de costume, Cate Blanchett personifica a autoconfiança na pele de uma psicóloga que obriga o malandro a voltar para onde veio, sem que ele perceba e dando azo a um desfecho moralista, mas elaborado. Del Toro consegue ser excelente mesmo quando previsível.
★★★★★★★★★★