O confinamento pandêmico foi o pretexto perfeito para afogarmo-nos em vinho, deliciarmo-nos com entregas e, finalmente, mergulharmos na lista de filmes esquecidos. Por isso, não é difícil criar afinidade com Anna Fox, a psicóloga vivida por Amy Adams em “A Mulher na Janela”. Sua reclusão forçada e seu olhar lançado para um mundo externo distante ressoam com aqueles que buscaram refúgio na ficção para suportar a realidade.
Joe Wright desconstrói as expectativas de quem espera um thriller convencional. Em vez disso, ele escava as profundezas de uma mente despedaçada, valendo-se da potência interpretativa de Adams. Anna observa a vida alheia através das janelas vizinhas, nutrindo-se dos fragmentos da realidade que capta. A cada cena, Wright nos leva por um caminho de incertezas, onde a sanidade é tão instável quanto a linha entre o real e o ilusório.
Adaptado do best-seller de A.J. Finn, o roteiro de Tracy Letts é uma aula de suspense psicológico. As referências a Hitchcock são claras, mas não gratuitas: cada detalhe narrativo é meticulosamente alinhado para manipular nossas percepções. Anna, paralisada pela agorafobia, testemunha algo que parece ser um crime do outro lado da rua. Contudo, confiar em seu juízo equivale a pisar em solo movediço.
A fotografia de Bruno Delbonnel intensifica a atmosfera opressiva. Os tons terrosos da casa de Anna, um típico edifício de arenito nova-iorquino, contrastam com sua figura pálida e desgrenhada em pijama bege — quase um espectro aprisionado em um mausoléu de lembranças. Entre visitas à janela, onde contempla um pedaço ínfimo da cidade, ela dialoga consigo mesma, revelando nuances de uma personalidade fragmentada entre o medo e a ternura.
O diretor explora esses momentos de introspecção para introduzir David (Wyatt Russell), o músico que aluga o porão, e Ethan (Fred Hechinger), o jovem vizinho cuja visita inesperada desperta memórias dolorosas em Anna. A troca de sabonetes de lavanda traz ecos de uma vida perdida, enquanto a interação entre os dois sugere uma relação materna frustrada.
Anna é uma personagem feita de ausências. Separada de Ed e privada da filha, ela se agarra a fragmentos do passado e às visitas de seu psiquiatra (interpretado por Letts). No entanto, é Ethan que catalisa sua percepção de uma verdade sombria e ambígua. A chegada dos pais de Ethan — Jane (Julianne Moore/Jennifer Jason Leigh) e Alistair (Gary Oldman) — amplia o jogo de espelhos narrativo, onde cada revelação gera mais dúvidas.
O confronto entre Anna e Alistair culmina em uma cena brutalmente farsesca, expondo a fragilidade da protagonista. Wright joga com a linha tênue entre loucura e realidade, fazendo o espectador questionar a própria sanidade da personagem. Quando Anna acusa Alistair de um crime, a dúvida paira: ela está certa ou afundou-se de vez em delírio?
O desenrolar do mistério, mesmo com novos personagens oferecendo respostas parciais, deixa uma inquietação persistente. “A Mulher na Janela” vai além do suspense; é um estudo psicológico sobre o isolamento, o trauma e os perigos silenciosos das metrópoles. A narrativa sugere um olhar cruel, mas necessário, sobre a histeria feminina e a desconfiança que permeia a solidão urbana.
No fim, o que fica é a constatação de que nossos maiores inimigos são os que habitam nossa mente. Entre pandemias, paranoias e persianas cerradas, há algo de trágico e sublime na maneira como o medo nos une.
★★★★★★★★★★