Redescobrir figuras históricas é um desafio que exige não apenas rigor, mas também sensibilidade para preencher as lacunas deixadas pela passagem do tempo. Em muitos casos, documentos, diários ou cartas ajudam a traçar a trajetória de personalidades marcantes. Contudo, a paleontóloga inglesa Mary Anning, ativa no período vitoriano, não teve a mesma sorte. No filme “Ammonite”, o diretor Francis Lee emprega licenças criativas para reimaginar aspectos de sua vida, oferecendo uma perspectiva que mistura realidade e ficção.
Interpretada com maestria por Kate Winslet, Mary Anning foi uma pioneira da paleontologia cujas descobertas moldaram o pensamento científico e influenciaram grandes nomes, como Charles Darwin. No entanto, sua contribuição foi amplamente ignorada, reflexo do sexismo arraigado da época. O filme retrata Anning como uma mulher resiliente, vivendo na pobreza e à margem dos círculos acadêmicos. Instituições como a Sociedade Geológica de Londres jamais aceitaram sua associação, e muitos de seus achados foram creditados a colegas homens, privando-a do reconhecimento merecido.
Francis Lee, ao contar sua história, optou por introduzir um elemento fictício: um romance entre Anning e Charlotte Murchison, interpretada por Saoirse Ronan. Embora Charlotte fosse, de fato, amiga de Mary e esposa do geólogo Roderick Murchison, não há registros históricos que corroborem tal relação amorosa. O filme extrapola a amizade documentada, transformando-a em uma conexão profunda e apaixonada, que desafia as rígidas convenções sociais da época.
Na trama, Roderick é representado como um marido negligente que, preocupado com a saúde de Charlotte, a confia aos cuidados de Anning enquanto viaja. O vínculo entre as duas se intensifica, e o romance que floresce é pintado como um refúgio contra as adversidades impostas pela sociedade. Mary, sustentando a família com a venda de fósseis, e Charlotte, sufocada por expectativas de gênero, encontram uma na outra empatia e afeto em um mundo que as relegava à solidão. Apesar do impacto emocional, vale lembrar que essa narrativa é uma escolha artística do diretor, e não um retrato fiel dos fatos.
Curiosamente, a Mary Anning da vida real era uma figura muito mais sociável do que o filme sugere. Cercada de amigos e respeitada por muitos cientistas, ela recebeu suporte financeiro significativo da comunidade científica ao ser diagnosticada com câncer, uma demonstração de apreço por seu trabalho. Ainda assim, “Ammonite” opta por uma abordagem intimista e contemplativa, focando na luta interna de suas protagonistas contra o isolamento e as limitações impostas pelo patriarcado vitoriano.
Visualmente, o filme se destaca pela cinematografia sublime de Stéphane Fontaine. As paisagens costeiras, capturadas em tons frios e naturais, criam uma atmosfera que reflete o isolamento emocional das personagens. O uso de luzes suaves e a composição minimalista intensificam a sensação de introspecção, transportando o espectador para a solidão agreste de Lyme Regis. Esse cenário se torna o palco onde sentimentos reprimidos ganham forma, revelando um amor que desafia as normas, ainda que nasça das lacunas deixadas pela história.
Disponível na Netflix, “Ammonite” vai além da reconstrução histórica ao oferecer uma meditação sobre conexões humanas e os espaços em que elas florescem, mesmo em tempos de exclusão e invisibilidade. É uma obra que, apesar de suas licenças poéticas, convida à reflexão sobre as barreiras enfrentadas por mulheres pioneiras como Mary Anning.
★★★★★★★★★★