O ano de 2024 chega ao fim e, mais uma vez, o Brasil se vê preso aos velhos dilemas: desigualdades que se aprofundam, desgaste político e uma sociedade inquieta em busca de significado em meio ao caos. Contudo, mesmo diante desse cenário desafiador, a literatura nacional resiste e floresce, reafirmando seu papel fundamental ao refletir as contradições do país — ora denunciando suas feridas mais expostas, ora oferecendo refúgio em narrativas que resgatam o que há de mais humano em nós.
Neste ano, a ficção brasileira brilhou com obras marcadas pela ousadia estilística, lirismo e uma crítica social afiada. Temas como memória, identidade, solidão e conflitos sociais foram abordados com profundidade e inventividade. A seleção dos melhores livros de 2024 foi definida a partir de uma ampla consulta aos leitores: 317 assinantes da newsletter participaram da votação, indicando até 12 títulos lançados neste ano. Ao todo, 89 obras foram mencionadas, e os 12 mais votados compõem esta lista — uma celebração à diversidade e à força da literatura brasileira contemporânea.
Entre os destaques do ano, “Vento Vazio”, de Marcela Dantés, recebeu 27 indicações ao retratar, com escrita atmosférica, vidas despedaçadas em um cenário árido onde o vento incessante ecoa traumas e obsessões. Em “Passeio com o Gigante”, Michel Laub (25 indicações) apresenta uma narrativa fragmentada e irônica sobre um advogado sionista que reflete sobre crises pessoais e políticas.
Odorico Leal surpreende com “Nostalgias Canibais” (20 indicações), uma coletânea que mistura realismo e fantasia para satirizar estruturas sociais com humor mordaz. Já “Água Turva”, de Morgana Kretzmann (19 indicações), alterna realismo e mito em uma história visceral sobre memória, resistência e os limites do tempo no sul do Brasil.
Com “Melhor Não Contar” (17 indicações), Tatiana Salem Levy explora, com precisão e coragem, as dores da protagonista ao revisitar eventos marcados por silêncios impostos às mulheres. No delicado “Bambino a Roma” (17 indicações), Chico Buarque transforma a nostalgia da infância na Roma dos anos 1950 em uma narrativa afetiva e lírica.
Caetano W. Galindo, em “Lia: Cem Vistas do Monte Fuji” (15 indicações), compõe um álbum de memórias fragmentadas com lirismo e inventividade, enquanto Solemar Oliveira, com “As Casas do Sul e do Norte” (13 indicações), entrelaça realismo e simbolismo para transformar o cotidiano em transcendência.
Nara Vidal, em “Puro” (11 indicações), revela as violências silenciosas de um vilarejo mineiro nos anos 1930, em uma trama sombria e delicada. Pablo Mathias apresenta “Tamarindos” (10 indicações), uma narrativa poética e sutil sobre memória e ausência, inspirada na delicadeza do reino vegetal.
Por fim, “Ojiichan”, de Oscar Fussato Nakasato (9 indicações), emociona com a jornada de um professor aposentado que busca ressignificar suas relações na velhice, enquanto “Três Camadas de Noite”, de Vanessa Barbara (9 indicações), mistura autobiografia, maternidade e mitologia grega em uma narrativa híbrida, irônica e sagaz.
Essas obras, ao unirem lirismo, crítica social e originalidade, reafirmam a potência da ficção brasileira em transformar o caos contemporâneo em narrativas indispensáveis. Cada título aqui apresentado ilumina histórias únicas e revela camadas profundas da condição humana. Seja para refletir, emocionar ou inspirar, esses livros merecem um lugar na sua estante — e na sua vida. Permita-se mergulhar nessas páginas e redescobrir, uma vez mais, a força transformadora da literatura brasileira. As sinopses foram adaptadas a partir das informações fornecidas pelas editoras. As fotos que ilustram a lista são dos fotógrafos Renato Parada e Luiz Augusto.
Na Quina da Capivara, o vento Vazio sopra incessante, enlouquecendo mentes e borrando os limites da realidade. Neste cenário árido, Miguel Sem-Fim encontra abrigo após chegar com o corpo queimado e memórias em frangalhos. Com a ajuda de Teodora, ele se torna vigia da usina eolioelétrica, até seu fechamento inesperado reabrir traumas e levá-lo ao limite da sanidade. Enquanto isso, Cícera, obsessiva, cava um buraco sem fim no quintal; Alma desafia a crença popular no poder destrutivo do vento; e a órfã Maura, desconexa e impulsiva, parece habitar outro mundo. Narrado por essas vozes fragmentadas, o romance desvela vidas marcadas por solidão, culpa e fantasmas do passado, em um fluxo narrativo tão avassalador e inquieto quanto o próprio vento. Com uma escrita intensa e atmosférica, Marcela Dantés conduz o leitor por uma trama perturbadora sobre memórias reprimidas, obsessões e o vazio que consome seus personagens.
Davi Rieseman, advogado sionista, sobe ao palco para um discurso repleto de memórias familiares e opiniões controversas sobre temas contemporâneos, como eleições no Brasil, antissemitismo e fundamentalismo religioso. Anos depois, confinado em um hospital onde realidade e delírio se confundem, Davi enfrenta um coro de vozes misteriosas que o obrigam a revisitar traumas ligados aos embates entre judeus seculares e religiosos, progressistas e conservadores. Com uma narrativa fragmentada, Michel Laub compõe um romance de contradições e tensões morais, revelando um protagonista complexo e fascinante. Mais do que um retrato político ou pessoal, “Passeio com o Gigante” reflete os mecanismos de adesão e repulsa que permeiam o comportamento humano em tempos de crise. Sem perder o tom irônico e afiado, Laub explora com maestria a culpa, a esperança e o preço da memória em um cenário pós-pandêmico.
Em sua estreia, Odorico Leal mistura realismo, sátira e fantástico para criar um retrato ácido e inquietante do Brasil. Em contos e novelas interconectados, conhecemos um Macunaíma canibal que atravessa séculos, gatos críticos observando uma dona à beira do despejo, um jovem mergulhado em crises pessoais e leituras de Umberto Eco, e uma jornalista investigando o fenômeno político dos Getulinhos. Entre humor afiado e crítica social, Leal reflete sobre as estruturas patriarcais e os dilemas contemporâneos, unindo memória, política e futuro. “Nostalgias Canibais” é uma narrativa provocativa, onde o absurdo e o fantástico revelam as tensões humanas e sociais de ontem e hoje. Uma estreia vigorosa que afirma Odorico Leal como uma nova voz promissora da literatura brasileira.
Na fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, o Parque Estadual do Turvo se torna palco do embate entre exploração e preservação ambiental. Chaya, uma guarda-florestal dedicada, descobre que a líder dos caçadores Pies Rubros é Preta, sua prima perdida na infância. Enquanto isso, Olga, assessora de um político corrupto, retorna à cidade natal para ser porta-voz de uma tragédia ambiental anunciada e percebe que está em suas mãos mudar o futuro. Forçadas a enfrentar o passado turbulento que as une, essas três mulheres tornam-se aliadas em uma luta pela floresta e por si mesmas. Guiadas pela figura mítica de Sarampião, o guardião da mata, elas mergulham em um embate onde natureza, memória e redenção se entrelaçam. Com uma narrativa visceral e envolvente, Morgana Kretzmann mistura realismo e mito, revelando a urgência de um mundo à beira do colapso.
Uma cena marcante inaugura o romance: aos dez anos, a protagonista relaxa na piscina com a mãe e o padrasto, quando o homem, um cineasta consagrado, revela um desenho que captura aquele momento. No esboço, um detalhe inquietante salta aos olhos — a menina, ainda na inocência infantil, é observada de maneira perturbadora, e o episódio se torna um divisor de águas, marcando o fim de sua infância. Filha de uma intelectual pioneira, uma mulher de espírito vital e força incomum, a narradora revisita, já adulta, os eventos que moldaram sua trajetória: a doença da mãe, que lhe foi arrancada ainda na juventude, a solidão do aborto vivido em outro país e a diferença brutal entre homens e mulheres ao contar suas próprias histórias. Com uma narrativa precisa e intensa, Tatiana Salem Levy constrói um romance de memória e confronto, explorando as desigualdades de gênero, os desejos velados e os silêncios impostos às mulheres ao longo da vida. Uma obra corajosa que, ao desafiar o próprio título, revela as dores, paradoxos e nuances de uma existência que se equilibra entre força e vulnerabilidade.
No primeiro romance de Caetano W. Galindo, a vida de Lia é contada em fragmentos, como retratos independentes que juntos compõem um álbum de memórias. Não linear, mas profundamente conectada, a narrativa é construída por lascas de lembrança, relances e detalhes dispersos, convidando o leitor a montar o quebra-cabeça da existência de Lia. Cada capítulo, embora autônomo, se entrelaça ao outro para revelar a complexidade sutil da vida humana. Com uma escrita delicada, inventiva e profundamente poética, Galindo transforma a imperfeição e a beleza do cotidiano em uma narrativa lúdica e sensível. “Lia” desafia a percepção do tempo, exaltando as pequenas histórias que compõem uma trajetória, como um álbum que só a memória é capaz de completar. Uma celebração da vida em suas formas mais fragmentadas, humanas e sutis.
Na Roma dos anos 1953-54, um menino brasileiro explora a cidade estrangeira com sua bicicleta de pneus brancos, traçando rotas imaginárias em mapas e ruas. Entre brincadeiras de bola, cartas apaixonadas para Sandy L. e memórias de família, ele vive uma infância marcada pela inocência e pela formação. Na efemeridade desse tempo, misturam-se episódios históricos como o suicídio de Vargas e a figura do papa Pio XII, criando um filme de memórias que mistura história e poesia. Chico Buarque preenche as lacunas deixadas pelo esquecimento com uma narrativa nostálgica e delicada, celebrando os medos, sonhos e descobertas desse tempo. “Bambino a Roma” transforma a memória em uma cartografia afetiva, onde a imaginação cobre o tempo e a vida se torna mágica, num equilíbrio sutil entre passado e ficção.
Vencedor da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, As Casas do Sul e do Norte reúne 14 contos interconectados que transitam com maestria entre o realismo e o simbolismo. Solemar Oliveira constrói personagens que habitam um frágil equilíbrio entre o fatalismo de suas limitações e a necessidade de agir contra um mundo adverso. Em contos como o homônimo e os dois finais, o autor atinge uma profundidade telúrica e uma dignidade épica que ressoam além das páginas. Com uma prosa elegante e precisa, Solemar homenageia a literatura e até os vinhos, criando labirintos referenciais e camadas narrativas que transformam o cotidiano em algo extraordinário. Temas como finitude, transcendência e redenção são explorados de forma sensível, revelando as forças invisíveis que moldam a condição humana. “As Casas do Sul e do Norte” confirma Solemar Oliveira como um dos nomes mais originais e sofisticados da literatura brasileira contemporânea, reafirmando seu talento para transformar o comum em extraordinário.
No início dos anos 1930, em um vilarejo de Minas Gerais, a crueldade que atravessa gerações se impõe de maneira brutal e inescapável. Nara Vidal apresenta uma narrativa tensa e surpreendente, onde segredos, rancores e violências silenciosas tecem um cenário familiar marcado pela dor. Com habilidade literária e sensibilidade, a autora desafia certezas e confronta o leitor com temas duros e inesperados. “Puro” expõe as sombras da condição humana, explorando o que permanece nas cicatrizes do passado e ecoa no presente. Provocativo e corajoso, o romance questiona até onde somos capazes de ir, lançando luz sobre os aspectos mais sombrios da existência e da sociedade.
Em sua estreia literária, Pablo Mathias apresenta seis contos interligados que formam uma narrativa expandida, conectada por temas como morte, memória e as estruturas frágeis das relações humanas. A trama é conduzida por uma teia sutil originária do reino vegetal, que simboliza o vínculo entre natureza e humanidade. Sob essa superfície delicada, emergem histórias marcadas pela presença do patriarcado, das ausências afetivas e das lacunas do cotidiano brasileiro. Cada conto expõe as tensões entre o silêncio e o inevitável, entre a vida e a morte, compondo um mosaico narrativo poético e crítico. Vencedor da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, “Tamarindos” alia precisão estética e profundidade reflexiva, revelando um autor atento às raízes simbólicas e sociais que moldam a existência humana. Mathias apresenta uma voz singular, capaz de transformar fragmentos dispersos em uma trama delicada, coesa e memorável.
No terceiro romance de Oscar Nakasato, vencedor do Prêmio Jabuti, acompanhamos Satoshi, um professor que, ao completar setenta anos, se vê diante dos desafios impostos pela velhice e solidão. A aposentadoria compulsória e o avanço da perda de memória de Kimiko, sua esposa, marcam uma nova fase em sua vida. Após uma tragédia familiar, os cuidados com Kimiko recaem sobre Satoshi, enquanto o afastamento do filho que vive no Japão e do neto distante intensifica seu isolamento. Forçado a mudar para um apartamento menor, ele encontra dona Estela e Altair, vizinhos que compartilham histórias de solidão. A chegada de Akemi, contratada como cuidadora, traz uma reviravolta inesperada ao seu cotidiano e ressignifica suas relações. Com uma prosa austera e delicada, Nakasato apresenta uma narrativa sensível e livre de melodrama, abordando as nuances da resiliência em um mundo que supervaloriza a juventude. “Ojiichan” é um retrato comovente e corajoso da fragilidade e beleza que habitam a terceira idade.
Neste tão aguardado retorno ao romance, a escritora, jornalista e tradutora Vanessa Barbara cria uma narrativa híbrida que entrelaça maternidade, saúde mental, escrita e mitologia grega. A protagonista, uma tradutora freelancer imersa em um projeto sobre mitologia, revisita a experiência do puerpério, enfrentando a privação do sono e a quebra de expectativas em relação ao aleitamento. Entre a espiral depressiva e o crescimento do bebê ao longo de dois anos, a narrativa revela o estreitamento dos laços familiares, mesclando passagens autobiográficas com reflexões sobre escritores que, como ela, conviveram com a depressão: Sylvia Plath, Clarice Lispector, Henry James e Franz Kafka. Em uma mistura constante de registros, Barbara traz humor e acidez ao descrever as pequenas nuances do cotidiano materno, costurando mitos do Monte Olimpo com anedotas contemporâneas. Com sagacidade característica, “Três Camadas de Noite” é uma leitura original e urgente, que ilumina com sutileza e profundidade os desafios da escrita, da maternidade e da saúde mental, conectando o passado literário às inquietações do presente.