Mestre em conservar o público na linha fina que divide o suspense do mal-estar, Haneke lança mão de truques narrativos matadores para inspirar desconfianças as mais tresloucadas. Como em “Cachè” (2005), resta óbvio que existe um personagem que desencadeia a ação e sai de fininho, pronto para ver o circo pegar fogo. Aos poucos, odiretor apresenta as peças desse imenso tabuleiro, com destaque para omédico, o barão e o pastor, cada qual convicto de sua licença para corromper, perseguir, doutrinar.
Esta é uma sociedade patriarcal e liberticida, feito tantas de há um século, e o preto e branco da fotografia de Christian Berger fixa a sensação errônea de que jamais há de acontecer nada semelhante em lugar algum. O espectador sabe de detalhes saborosos da história por meio do professor, que quando idoso ganha a voz de Ernst Jacobi (1933-2022); quando a ação toma corpo, ele é ainda um jovem adulto de 31 anos interpretado por Christian Friedel, que cortejará, a princípio sem muito sucesso, Eva, a babá dos filhos do barão vivida por Leonie Benesch.
O professor não assume lado e conta o que se passou da forma mais objetiva e imparcial. Voltando para casa, o médico cai do cavalo, por causa de um arame posto entre as cercas. O homem sofre um deslocamento severo da clavícula e permanece internado por um bom tempo, até retomar suas atividades, momento que Haneke reserva para esclarecer alguns pontos sobre sua personalidade nefasta. Dias mais tarde, a vítima é o filho do barão, e o episódio degringola na dispensa de Eva, que, conforme se vai assistir, parece a única alma bondosa por ali. O criminoso (ou os criminosos), cuja identidade não se conhece, está transmitindo uma mensagem, fazendo questão de deixar claro que nada é casual. Os moradores do povoado logo entendem que vige uma lei tácita, que pune qualquer um que não aja conforme o que se poderia considerar como o certo. É dessa maneira que age o pastor encarnado por Burghart Klaußner, que amarra fitas brancas nos braços de dois dos filhos após flagrá-los em atitudes reprocháveis.
Haneke fornece alguns indícios para uma possível solução do enigma, imitando o professor e mais sugerindo que decretando o que quer que seja. A ascensão nazista é, sim, um espectro que cerca “A Fita Branca”, mormente quando do assassinato de Francisco Ferdinando (1863-1914), pontapé inicial da Primeira Guerra, mas a tese do diretor é que o monstro da intolerância nasce no coração do homem todo santo dia, sem que se possa esboçar reação muitas vezes. O segredo, conforme apreende-se dessa obra-prima do cinema, é saber encarar o medo como parte da vida, o que, convenhamos, é uma arte para pouquíssimos.
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