Auto-de-Fé: a sublime tragédia e o fogo da alma de Elias Canetti

Auto-de-Fé: a sublime tragédia e o fogo da alma de Elias Canetti

Há algo peculiar e inquietante no início de “Auto-de-Fé”, romance emblemático de Elias Canetti. Uma sensação de desconforto que se instala logo nas primeiras páginas. Cada lance narrativo revela uma nova distorção, uma nova faceta perturbadora do que se acreditava ser conhecido. Talvez seja a solidão densa que emana do protagonista, Peter Kien, ou a claustrofobia das paredes cheias de livros que o cercam, como se a cultura acumulada ao longo dos séculos estivesse prestes a desmoronar sobre ele e, por tabela, sobre o leitor. Mas o que realmente prende é essa estranheza que parece prometer mais do que apenas uma leitura: um mergulho num abismo de psicologias tortuosas e obsessões inescapáveis.

Desde o primeiro momento, a leitura de “Auto-de-Fé” se torna uma espécie de desafio irresistível. Há algo hipnótico em Canetti, algo que não permite que o livro seja largado, por mais desconcertante que se torne. O leitor é como um alpinista que, ao vislumbrar a escarpa traiçoeira e implacável, não consegue resistir ao impulso de escalar. Cada página é um degrau a mais nessa escalada, um convite a desbravar o território desconhecido da mente humana, mesmo sabendo que o caminho é íngreme e potencialmente perigoso.

Essa impossibilidade de abandonar a leitura está intrinsecamente ligada à construção meticulosa de um mundo que, embora pareça familiar, é profundamente distorcido. As ruas de Viena, os personagens que cruzam o caminho de Kien, tudo parece ser tirado de um sonho febril, onde a realidade se mescla com delírios e manias. E é nesse limiar entre o real e o imaginário que o leitor se vê preso, incapaz de definir com clareza onde termina um e começa o outro.

Elias Canetti
Auto-de-Fé, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro, 672 páginas)

A vida de Peter Kien, um sinólogo recluso e erudito, é, à primeira vista, o retrato de um homem consumido por sua própria paixão pelo conhecimento. No entanto, à medida que a narrativa avança, essa paixão se revela como uma prisão autoimposta, uma obsessão que o afasta do mundo exterior e o empurra para um universo interior cada vez mais fragmentado e caótico. A biblioteca que ele tanto preza deixa de ser um santuário de sabedoria e se transforma em um mausoléu, onde cada livro é um bloco de cimento, selando-o mais profundamente em sua própria loucura.

Essa transformação do ambiente e do protagonista é uma das razões pelas quais é impossível largá-lo. Canetti não nos permite o conforto da indiferença. Ele nos força a acompanhar a lenta e inexorável derrocada de Kien, como se estivéssemos testemunhando um acidente em câmera lenta, incapazes de desviar o olhar. E, ao fazer isso, nos coloca frente a frente com as nossas próprias obsessões e medos, refletidos na figura trágica de seu personagem.

O estilo de Canetti, marcado por uma prosa densa e detalhista, é outro elemento que contribui para essa compulsão de seguir adiante. Cada frase parece carregada de uma significância oculta, cada diálogo revela mais do que apenas as palavras pronunciadas. Há um subtexto constante, uma corrente subterrânea de significados que exige do leitor não apenas atenção, mas uma entrega total ao fluxo da narrativa.

Ao mesmo tempo, a estranheza que perpassa a obra não é gratuita ou meramente ornamental. Ela é essencial para a construção do clima de tensão e desassossego que permeia o livro. Essa sensação de desconforto, que começa de forma quase imperceptível, vai se intensificando à medida que a história avança, culminando em momentos de verdadeira angústia. E é essa angústia que mantém o leitor cativo, em um estado de alerta constante, como se algo terrível estivesse prestes a acontecer a qualquer momento.

A interação de Kien com os outros personagens também contribui para esse sentimento de estranheza. A governanta Teresa, com sua brutalidade disfarçada de servidão; o anão Fischerle, cuja ambição desmedida beira o grotesco; e o irmão de Kien, Georges, que parece representar uma racionalidade fria e implacável — todos eles são figuras que, à sua maneira, ampliam a sensação de que estamos lidando com um mundo que segue suas próprias regras, alheias à lógica comum.

Ao nos fazer adentrar esse universo, Canetti nos desafia a reconsiderar nossas próprias noções de normalidade e sanidade. Ele nos obriga a questionar o que significa, de fato, viver em sociedade, e até que ponto nossas obsessões pessoais podem nos isolar do resto do mundo. É uma reflexão profunda e desconfortável, mas necessária, e é justamente isso que torna este livro uma obra tão poderosa e inesquecível.

O impacto dessa leitura é duradouro. Mesmo após a última página, as imagens, os personagens, as situações continuam a ressoar na mente do leitor, como ecos de um sonho perturbador que se recusa a ser esquecido. A estranheza inicial se transforma em uma espécie de familiaridade inquietante, como se tivéssemos descoberto algo sobre nós mesmos no processo — algo que preferiríamos não ter visto, mas que agora não podemos mais ignorar.

“Auto-de-Fé” não é apenas uma história sobre um homem e seus livros. É uma exploração das profundezas da psique humana, uma dissecação das nossas manias e obsessões, e uma crítica mordaz às armadilhas do intelecto quando desvinculado do mundo exterior. É uma obra que nos desafia, que nos incomoda e que, por isso mesmo, se torna indispensável.

Quando pensamos no início desse romance, a sensação de estranheza não é apenas uma técnica narrativa, mas o prenúncio de algo maior. É o primeiro passo em uma jornada que vai nos conduzir por caminhos tortuosos e imprevisíveis, onde a lógica e a razão não são guias confiáveis, e onde cada virada de página é uma descida mais profunda na complexidade do ser humano.

E é justamente por isso que é impossível abandonar a leitura. Sempre há algo mais a ser descoberto, algo que ainda não foi dito, mas que paira no ar, esperando para ser revelado. E essa promessa, essa expectativa constante, é o que nos mantém ali, incapazes de abandonar a obra, mesmo quando a estranheza se torna quase insuportável.

Ao final, somos confrontados com a inevitável verdade de que não é apenas uma leitura; é uma experiência. Uma experiência que nos transforma, que nos desafia a olhar para dentro de nós mesmos e a questionar o que encontramos. E é essa transformação que faz com que, uma vez começada a leitura, seja impossível abandoná-la. Porque, assim como Kien, nós também somos prisioneiros de nossas próprias obsessões, e a única forma de nos libertarmos é seguir adiante, até o fim.

O enredo de “Auto-de-Fé” gira em torno de Peter Kien, um sinólogo de renome, cuja vida é inteiramente dedicada aos livros. Ele vive em um apartamento em Viena, cercado por uma vasta biblioteca particular que é, para ele, a única fonte de satisfação e sentido na vida. A personalidade de Kien é marcada por uma extrema aversão ao contato humano e uma obsessão pelo conhecimento, que o isola cada vez mais do mundo exterior. Sua rotina é meticulosamente organizada, e ele praticamente não interage com outras pessoas, preferindo o silêncio e a solidão dos livros.

No entanto, sua vida metódica sofre uma reviravolta quando ele decide, impulsivamente, casar-se com sua governanta, Teresa. Teresa, uma mulher rude e calculista, percebe rapidamente a obsessão de Kien pelos livros e vê nisso uma oportunidade para se apossar de sua fortuna. O casamento é desastroso desde o início; Kien, incapaz de lidar com as demandas práticas e emocionais de uma vida conjugal, se vê cada vez mais oprimido por Teresa, que começa a impor sua presença de maneira cada vez mais tirânica.

A relação entre Kien e Teresa se deteriora rapidamente, culminando em um episódio de violência, onde Kien é expulso de seu próprio apartamento. Desorientado e sem rumo, ele vagueia pelas ruas de Viena, mergulhando em uma espiral de loucura. Nesse estado, Kien encontra outros personagens igualmente bizarros e desajustados, como o anão Fischerle, um vigarista que sonha em se tornar campeão mundial de xadrez. Fischerle, percebendo a fragilidade mental de Kien, o manipula para se aproveitar de sua condição, enquanto Kien, perdido em sua própria paranoia, começa a acreditar que o mundo inteiro conspira contra ele.

À medida que a trama avança, Kien mergulha cada vez mais fundo em sua insanidade. Ele passa a acreditar que deve salvar seus livros da destruição, mas essa obsessão só o leva a se afundar mais na desintegração psicológica. Fischerle, por sua vez, se aproveita da deterioração de Kien para enganá-lo e roubar o pouco que ele ainda possui. A narrativa se torna cada vez mais claustrofóbica, refletindo o estado mental de Kien, que vê sua realidade se distorcer e fragmentar de maneira irreversível.

A situação de Kien se agrava quando ele é internado em uma instituição psiquiátrica, onde seu estado de saúde mental continua a piorar. Através de uma série de eventos grotescos e surreais, ele é convencido de que precisa destruir todos os livros para salvar o mundo, uma ideia que simboliza o colapso completo de sua razão. Canetti conduz o leitor por essa descida ao inferno mental de Kien, onde a obsessão e a loucura se entrelaçam de forma inseparável.

O desfecho do livro é trágico e inevitável. Kien, em um ato final de desespero, incendeia sua preciosa biblioteca, consumido pela crença de que está realizando uma missão grandiosa e necessária. No entanto, o fogo não purifica, mas destrói completamente o que restava de sua identidade e sanidade. A imagem de Kien se consumindo junto com seus livros é poderosa e simboliza a falência completa de um homem que se perdeu em sua própria erudição, incapaz de se reconectar com a realidade.

O romance termina com a morte de Kien, um final que Canetti constrói de maneira implacável, sem oferecer qualquer possibilidade de redenção ou alívio. A tragédia de Kien é o resultado de uma vida vivida em isolamento extremo, onde a mente, sem o contrapeso da interação humana, se torna um campo fértil para as obsessões mais destrutivas. O livro se conclui como uma poderosa crítica ao intelectualismo desvinculado da vida real, uma advertência sobre os perigos de se viver em um mundo de abstrações sem um ancoradouro na realidade tangível.

Canetti construiu uma obra que é a crônica da desintegração de um homem, cuja vida foi dedicada ao conhecimento, mas que, ao se isolar completamente, se perde em um labirinto de sua própria mente. O narrador não apenas conta a história de Kien, mas constrói um estudo profundo sobre a natureza humana, a fragilidade da sanidade e os limites do intelecto. O enredo, denso e carregado de simbolismos, é uma poderosa exploração das consequências da obsessão, do isolamento e da perda de contato com o mundo real.

Elias Canetti, ao escrever sua obra-prima, foi profundamente influenciado por uma série de autores e correntes literárias que marcaram o cenário intelectual europeu no início do século 20. Sua obra não surge de um vácuo; ao contrário, ela se insere em uma tradição literária rica e complexa, onde o pensamento filosófico, as experimentações formais e o aprofundamento na psicologia humana se entrelaçam de maneira intricada.

Uma das influências mais evidentes neste livro singular é a obra de Franz Kafka. O universo kafkiano, marcado por uma lógica absurda, pelo sentimento de alienação e pela impotência diante de forças opressoras e incompreensíveis, ressoa profundamente na narrativa de Canetti. Assim como Kafka, Canetti cria um mundo onde a realidade parece distorcida, onde as figuras de autoridade são ao mesmo tempo grotescas e inescapáveis, e onde os protagonistas, apesar de seu intelecto ou posição, são arrastados inexoravelmente para sua própria destruição. A influência de Kafka se faz sentir na forma como Canetti constrói a psique de Peter Kien, um personagem que, assim como os protagonistas kafkianos, se vê preso em um sistema de regras invisíveis e opressivas que ele não pode compreender ou controlar.

Outro autor cuja influência é notável é Robert Musil. Canetti era profundamente admirador de “O Homem Sem Qualidades”, uma obra monumental que explora o colapso de valores no período pré-Primeira Guerra Mundial. Musil, como Canetti, se interessa por explorar a condição humana em uma sociedade cada vez mais fragmentada e alienada. A introspecção psicológica e o detalhamento minucioso das obsessões e neuroses dos personagens em “O Homem Sem Qualidades” encontram eco no tratamento que Canetti dá ao seu protagonista e ao seu mundo interior. A ideia de que o intelecto, quando desprovido de uma ligação com a vida prática e social, pode se tornar uma força destrutiva é central em ambos os autores.

A filosofia de Arthur Schopenhauer também é uma influência importante na obra de Canetti. Schopenhauer, com seu pessimismo filosófico e sua visão do mundo como um lugar dominado pelo sofrimento e pela vontade irracional, oferece uma lente através da qual podemos entender a visão sombria de Canetti sobre a natureza humana e a civilização. Esta obra reflete uma desconfiança profunda na razão humana e uma visão cínica das relações sociais, temas que são centrais na filosofia schopenhaueriana. O isolamento de Kien e sua desconexão com o mundo material podem ser vistos como uma manifestação do ideal schopenhaueriano de recusa do mundo, embora levada a um extremo patológico.

Sigmund Freud e a psicanálise também deixaram uma marca significativa na escrita de Canetti. O mergulho profundo na psique de Peter Kien, com suas obsessões, manias e neuroses, reflete a influência do pensamento freudiano, particularmente no que diz respeito à exploração do inconsciente e das forças irracionais que governam o comportamento humano. Canetti parece explorar a ideia freudiana de que o indivíduo é muitas vezes dominado por desejos e impulsos que ele não compreende completamente, e que essas forças podem levá-lo à autodestruição. A figura de Kien pode ser vista como um estudo de caso freudiano, onde a repressão de emoções e a supervalorização do intelecto resultam em um colapso total da personalidade.

Além dessas influências literárias e filosóficas, Canetti também foi impactado por suas próprias experiências pessoais e observações da sociedade de sua época. A Viena dos anos 1920 e 1930, com suas tensões sociais, políticas e culturais, serve como pano de fundo para o livro. A cidade, que foi o epicentro de tanto florescimento cultural quanto de turbulência política, reflete as contradições que Canetti viu na civilização ocidental: um lugar de grande erudição e cultura, mas também de extremismo, fanatismo e violência latente. Essa dualidade é central na construção do mundo de “Auto-de-Fé”.

A tradição dos romances de formação alemães, ou “Bildungsromane”, que se inicia com “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, de Goethe, também desempenha um papel na estrutura do livro. Embora a narrativa seja, de certa forma, um antirromance de formação — onde, ao invés de evolução e crescimento, vemos a regressão e a desintegração do protagonista —, a influência dessa tradição literária é evidente. Canetti inverte os tropos tradicionais do gênero para subverter as expectativas do leitor e questionar as narrativas de progresso intelectual e moral que eram comuns na literatura europeia.

Elias Canetti
Elias Canetti tece sua narrativa com a precisão de um relojoeiro e a paixão de um poeta, criando uma obra que pulsa com vida própria

A obra se configura como profundamente enraizada na tradição literária e filosófica europeia, dialogando com autores e ideias que moldaram a modernidade. Canetti não apenas absorve essas influências, mas as transforma, criando uma narrativa única que desafia tanto o leitor quanto as convenções literárias de sua época.

A estrutura é cuidadosamente planejada para refletir a descida gradual do protagonista, Peter Kien, à loucura. Dividido em três partes — “A Cabeça Sem Mundo”, “A Cabeça Sob o Mundo” e “O Mundo na Cabeça” — o romance utiliza essas seções como marcos da transformação do protagonista, mapeando a degradação de sua mente ao longo da narrativa. Cada título é uma metáfora poderosa que encapsula o estado mental de Kien em cada fase de sua jornada, sublinhando a desconexão crescente entre seu intelecto e a realidade externa.

Na primeira parte, “A Cabeça Sem Mundo”, somos apresentados ao universo interno de Kien, um erudito que vive enclausurado em sua própria mente. Esta seção estabelece a obsessão de Kien por livros e pelo conhecimento, ao mesmo tempo em que revela seu desprezo pelo mundo exterior e pelas relações humanas. A estrutura aqui é linear, mas já sugere a rigidez mental do protagonista, incapaz de adaptar-se a qualquer mudança que ameace sua bolha intelectual. Kien é retratado como um homem que possui vasto conhecimento, mas que é desprovido de qualquer sabedoria prática para lidar com a vida. Como observa o crítico Georg Lukács, a alienação de Kien é uma representação extrema do isolamento que o intelectual moderno pode sofrer, imerso em teorias abstratas, mas cego para a realidade concreta ao seu redor.

A segunda parte, “A Cabeça Sob o Mundo”, marca a desintegração desse isolamento intelectual quando Kien é forçado a confrontar a crueza da realidade ao ser expulso de seu apartamento. Aqui, a estrutura do romance se torna mais caótica, refletindo a fragmentação da psique de Kien. Os eventos se tornam mais surreais, e a narrativa começa a transitar entre o real e o delírio, acompanhando o colapso mental do protagonista. Canetti utiliza uma técnica narrativa que mistura os pensamentos internos de Kien com os diálogos externos de forma quase indistinguível, criando uma atmosfera de confusão que sugere a perda de controle de Kien sobre sua própria mente.

Na última parte, “O Mundo na Cabeça”, o título já indica uma inversão completa: a realidade exterior foi totalmente suprimida pela visão distorcida e alucinada de Kien. A estrutura aqui se torna ainda mais fragmentada, com episódios que parecem desconexos e logicamente incoerentes, um reflexo do estado mental terminal de Kien. Ele acredita que deve destruir o mundo para salvá-lo, um pensamento que é ao mesmo tempo uma expressão de sua loucura e uma crítica de Canetti à arrogância do intelecto quando levado ao extremo. Como aponta Harold Bloom, essa última parte do romance exemplifica a fusão de crítica social com uma exploração psicológica, resultando em uma narrativa que desafia o leitor a distinguir entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva do personagem.

A linguagem de “Auto-de-Fé” é igualmente notável por sua precisão e densidade. Canetti, que era um profundo conhecedor de várias línguas, utiliza uma prosa que é ao mesmo tempo rica em detalhes e econômica em excessos. Cada palavra é escolhida com cuidado para maximizar seu impacto, criando uma tensão constante entre o dito e o não dito. A linguagem de Canetti é muitas vezes comparada ao bisturi de um cirurgião: cortante, incisiva e precisa, revelando as camadas mais profundas da psique de seus personagens com uma clareza quase dolorosa.

Esse estilo é particularmente evidente na forma como Canetti descreve os pensamentos e as percepções de Kien. A prosa é frequentemente fragmentada, com frases curtas e abruptas que espelham o estado mental perturbado do protagonista. Canetti utiliza repetições e variações sutis de palavras e frases para criar um ritmo quase hipnótico, que intensifica a sensação de claustrofobia e desespero que permeia a narrativa. A linguagem em “Auto-de-Fé” é “um reflexo da deterioração mental de Kien, onde a clareza e a lógica são gradualmente substituídas por confusão e irracionalidade”.

O estilo de Canetti também se caracteriza por uma certa frieza e objetividade, que contrasta de maneira eficaz com a intensidade emocional da história. Ele evita qualquer tipo de sentimentalismo ou romantismo, preferindo uma abordagem quase clínica ao descrever as ações e os pensamentos de seus personagens. Essa objetividade permite que Canetti explore temas profundos e perturbadores sem recorrer a melodramas, oferecendo ao leitor uma visão nítida e desapaixonada da tragédia que se desenrola. Susan Sontag destaca essa qualidade em Canetti, afirmando que sua prosa “funciona como um espelho frio e implacável da condição humana, onde a verdade é revelada sem embelezamentos”.

Além disso, Canetti faz uso frequente de diálogos afiados e carregados de subtexto, onde o que não é dito é tão importante quanto o que é verbalizado. Esses diálogos revelam não apenas as intenções ocultas dos personagens, mas também suas fraquezas e contradições, criando uma camada adicional de complexidade à narrativa. A economia de palavras nos diálogos contrasta com a densidade descritiva da prosa, criando um equilíbrio delicado que mantém o leitor em constante estado de alerta.

A escolha de Canetti por um estilo minimalista nos diálogos também reflete sua preocupação com o poder da linguagem e suas limitações. Para Canetti, a linguagem é uma ferramenta poderosa, mas também perigosa, capaz de construir realidades tanto quanto de destruí-las. Trata-se de um romance no qual a linguagem é ao mesmo tempo a arma de Kien e sua ruína, pois é através dela que ele tenta impor sua visão de mundo aos outros, mas também é por meio dela que sua loucura se manifesta e o consome. Como ressalta George Steiner, Canetti explora a “ambiguidade da linguagem como uma forma de poder, onde a palavra pode ser tanto um instrumento de dominação quanto de autodestruição”.

A prosa de Canetti também é marcada por uma rica simbologia, que se entrelaça de maneira intricada com o enredo e os temas do romance. Os livros, por exemplo, não são apenas objetos de adoração para Kien; eles simbolizam o próprio mundo interior do protagonista, sua tentativa de controlar e compreender o caos ao seu redor através do conhecimento. No entanto, essa adoração aos livros se torna uma forma de prisão, uma barreira que o separa do mundo real e o empurra para a loucura. Essa dualidade no simbolismo reflete a ambivalência de Canetti em relação ao poder do conhecimento e à intelectualidade.

Outro elemento estilístico importante é o uso do grotesco e do exagero. Canetti frequentemente apresenta seus personagens e situações de forma caricatural, quase como figuras em uma pintura expressionista, onde as emoções e os traços de personalidade são intensificados até o limite do absurdo. Essa técnica serve para destacar a alienação e o isolamento dos personagens, bem como para criticar as aberrações da sociedade moderna. O grotesco em Canetti não é apenas uma forma de chocar o leitor, mas uma ferramenta para expor as deformações da psique humana e das estruturas sociais.

“Auto-de-Fé” pode ser descrito, quanto ao seu estilo, como uma fusão de realismo psicológico com uma abordagem quase alegórica da narrativa. Enquanto o romance explora profundamente o mundo interior de seus personagens, ele também funciona como uma alegoria da condição humana, onde as obsessões individuais refletem temas universais de poder, loucura e destruição. A linguagem e o estilo de Canetti, com sua precisão cirúrgica e simbolismo rico, são fundamentais para essa dualidade, permitindo que o romance opere simultaneamente em níveis literal e metafórico.

A estrutura criada para o livro é intrincada e cuidadosamente elaborada, refletindo a descida do protagonista ao abismo de sua própria mente, enquanto a linguagem e o estilo elevam a narrativa a um estudo profundo e implacável da alma. Cada elemento do romance — desde a escolha das palavras até a construção dos diálogos e o uso do simbolismo — contribui para criar uma obra que é ao mesmo tempo intelectualmente desafiadora e emocionalmente perturbadora. É essa combinação de estrutura rigorosa e estilo incisivo que faz desta narrativa uma obra-prima da literatura moderna, um livro que continua a fascinar e a inquietar leitores e críticos desde sua publicação.

Canetti tece sua narrativa com a precisão de um relojoeiro, mas também com a paixão de um poeta, criando uma obra que pulsa com vida própria. A travessia do livro se assemelha a embarcar em uma jornada que desafia a mente e o espírito. É atravessar um labirinto cheio de insights, uma nova faceta da complexidade humana. Não se trata apenas de acompanhar a trajetória de Peter Kien; é um convite a confrontar as nossas próprias obsessões, medos e desejos. Canetti nos obriga a olhar para dentro, a questionar nossas certezas, a explorar os recantos mais sombrios de nossa própria psique. O que encontramos ali pode ser desconcertante, mas é precisamente essa inquietação que torna o livro indispensável.

“Auto-de-Fé” é reservado aos que estão dispostos a abrir mão do conforto das narrativas lineares e mergulhar em um universo onde a lógica é subvertida, onde o intelecto, quando divorciado da humanidade, pode se tornar uma força destrutiva. A obra é um espelho que reflete não apenas a loucura do seu protagonista, mas também a loucura latente em uma sociedade obcecada pelo poder e pelo controle. É o descortinar do confronto inevitável com o nosso próprio potencial para a destruição e a redenção.

Se o leitor busca uma leitura que o desafie, que o instigue e que o faça questionar o que significa ser humano em um mundo cada vez mais caótico, então este é o livro. É preciso se deixar levar pelas palavras de Canetti, permitir que ele o guie por esse caminho tortuoso, mas profundamente recompensador. Ao final, não se é o mesmo. O livro deixa marcas, ecoa na mente muito tempo depois que a última página foi lida. É uma obra que vive dentro de quem a lê, despertando uma nova consciência, um novo olhar sobre o mundo e sobre si mesmo.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.