Se a vida lhe der um tombo, aproveita para fazer um duplo twist carpado

Se a vida lhe der um tombo, aproveita para fazer um duplo twist carpado

Eram tempos de servidão à obstetrícia. Atendia uma gestante cujo útero tinha o tamanho de uma fruta de lobeira. Consultava-se comigo há anos, desde os tempos de solteirice. Estava acompanhada por um homem de meia idade que, à primeira vista, supus fosse o marido. Tinha um semblante familiar.

Enquanto examinava a grávida e o concepto que crescia feito um coró nas suas entranhas, fiz um exercício mental hercúleo para me lembrar quem era o dito-cujo. De alguma maneira, a presença dele no consultório me incomodava. Finalmente, o estalo.

— O senhor deve ser o marido.

— Irmão. Sou irmão dela, doutor.

— Entendo. Qual é mesmo a sua graça?

— Ernesto.

— Já nos vimos antes, Ernesto?

— Uai, doutor. Pode ser. Não sei. Será?

— Acho que lhe conheço.

— É mesmo, doutor? E de onde é que o senhor me conhece?

— Você é policial?

— Uai, eu fui policial um dia, doutor. Policial civil.

— Trabalhou naquele distrito do Caixote Quebrado?

— Sim. Exatamente. Já tem muito tempo. Agora fiquei curioso, doutor. Como foi que o senhor me conheceu?

— Você me prendeu.

O homem que era mulato embranqueceu. A gestante que tagarelava pelos cotovelos emudeceu. O feto que não participava da resenha deu um salto duplo twist carpado de contentamento. Afinal, ainda havia muito espaço livre na bolsa das águas.

— Eu prendi o senhor, doutor?

— Santo Cristo — comentou a pobre da grávida.

— Não me lembro, em absoluto, doutor.

— Nunca me esqueço desse acontecido por dois motivos básicos: primeiro, porque pensei que seria torturado; segundo, porque temia ser morto. Pimenta no cu dos outros é refresco, sabe como é.

Não riram do palavreado chulo e totalmente desnecessário. O feto, se compreendeu, divertiu-se.

— Era final de tarde. Eu tinha acabado de sair do hospital. Naquela época ainda usava roupas brancas, sapatos brancos, meias brancas, tipo aquela turma da Universo em Desencanto. Parei num semáforo. Daí vocês bloquearam-me a passagem com um carro. Acho que era um carro da Volks. Exatamente. Era uma Parati. Uma Parati velha, cor de burro-fugido, sem identificação e sem o logotipo da polícia.

— Meu Deus do céu, Ernesto — sussurrou a grávida prestes a sofrer uma síncope.

— Você e outro sujeito que estava no banco do carona desceram com as armas em punho. Pensei que fosse assalto, sequestro ou coisa do gênero. Não ia esperar pra ver. Pelo espelho retrovisor, percebi que não tinha nenhum carro atrás. Raciocinei mais rápido do que o evacuar de um ganso, taquei o pé no acelerador e escapei de marcha a ré avenida acima. Sei que vocês correram no meu encalço porque ouvia o estampido dos tiros. Não demorou muito fui obrigado a parar por causa de um pneu furado à bala.

— Já fiz coisa errada.

— Fiquei abaixado com as mãos sobre a cabeça.

Vocês me retiraram do veículo e me mandaram colocar as mãos sobre o carro e coisa e tal. Juntou gente rapidinho. Era como dar milho aos pombos. Gritei o meu nome, gritei que era médico e que estava sendo sequestrado pela polícia. Esbravejei também o número do telefone lá de casa na esperança de que algum transeunte de bom coração ligasse para os meus avisando sobre o atentado. E não é que existia gente boa no mundo? Uns cinco telefonaram.

— Sangue do Cordeiro — ela disse.

— Enfim, vocês me enfiaram na tal da Parati com as mãos algemadas e me conduziram até o distrito. Fui interrogado pelo delegado cujo nome felizmente não me recordo. Até hoje não sei por que tudo aquilo aconteceu. Na delegacia, ninguém explicou a captura cinematográfica pra mim e pra a multidão de gente que acorreu para me livrar do sufoco.

— Eu já fiz muita coisa errada, doutor. Hoje sou outro homem. Eu me converti. Deus perdoou os meus pecados e me tirou da vida desregrada que eu levava.

Espero que o senhor me perdoe. O senhor me perdoa, doutor?

— Sei lá. Ainda bem que você não me matou. Senão eu não teria como fazer o parto da sua irmã.

Eu gargalhei feito um idiota. O sujeito ficou sem reação. A grávida destampou um choro. E o feto encheu a cara com sangue umbilical de primeira qualidade.   

— Não sei o que dizer, doutor. Estou chocada. Deus do céu, Ernesto? Como é que foi fazer uma coisa como essa com gente sem culpa.

— Jesus me tirou da escuridão, minha irmã. Creia. Aleluia. Aleluia.

Despedimo-nos. O rapaz deixou sobre a mesa um panfleto com versículos bíblicos e o endereço da igreja. Entreguei para a barriguda a solicitação da ecografia por meio da qual um feto saudável seria flagrado rindo-se da situação. Eu não me certifiquei desse fato. Eles jamais voltaram ao consultório.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.