Se procurarmos bem, há uma narrativa de paixão complexa em “…E o Vento Levou”. Esta é uma dessas obras cinematográficas atemporais, que vale revisitar periodicamente. Produzido em uma época em que o cinema conseguia unir, em um único longa-metragem, profundidade reflexiva, sofisticação visual, poesia dramática e, claro, uma peculiar história de amor, o filme permanece uma experiência única. Os Estados Unidos, com sua resistência à mudança desde os anos 1890, emergem como pano de fundo para esse enredo situado no período da Guerra Civil (1861-1865). Enquanto o norte buscava libertar-se da vergonha de uma economia ancorada na escravidão, o sul lutava para preservar esse sistema, custasse o que custasse em sangue.
Essa é a temática central do romance histórico de Margaret Mitchell (1889-1949), publicado em 1936, que o diretor Victor Fleming (1889-1949) leva às telas com habilidade e nuances visuais. A trama segue Scarlett O’Hara, uma jovem obstinada, mimada e dispendiosa, que é forçada a amadurecer quando os soldados do norte invadem a Geórgia. A adaptação escrita por Oliver H.P. Garrett (1894-1952) e Sidney Howard (1891-1939) dá destaque à personagem de Scarlett, com todas as suas ambiguidades, mas também apresenta figuras que se enraízam no imaginário popular, seja por razões nobres ou controversas.
O aviso prévio ao prólogo alerta para o contexto histórico do sul dos Estados Unidos nos anos 1860. Portanto, o filme traz situações que refletem comportamentos comuns daquela época e que hoje provocam desconforto, revolta e indignação. Em Tara, a plantação da família O’Hara, Scarlett exerce sua autoridade sobre os escravizados, uma realidade brutalmente aceita por aquela sociedade. Alguns veem na protagonista um exemplo das poucas mulheres que conseguiram desafiar a misoginia e impor suas vontades — à semelhança da própria Margaret Mitchell. No entanto, é evidente que Scarlett também encarna a figura da “megera” shakespeariana.
Fleming conduz o olhar do público por esse universo opulento e cruel, usando uma recepção em Twelve Oaks para destacar a importância que os proprietários conferiam à posse de pessoas escravizadas. Com o passar das cenas, Mammy — a serviçal que criou Scarlett e permanece como um pilar da casa — revela-se uma figura complexa, uma das poucas que desafia a jovem com firmeza. As performances de Vivien Leigh (1913-1967) e Hattie McDaniel (1893-1953), premiadas com o Oscar de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, respectivamente, são centrais para o impacto do longa.
A obsessão de Scarlett por Ashley Wilkes, o marido de Melanie Hamilton, teria um desfecho diferente em qualquer outro contexto histórico, mas Scarlett permanece impune — até conhecer Rhett Butler. Este homem ousado e irreverente é o único capaz de confrontar a heroína e, paradoxalmente, despertar sua vulnerabilidade. Rhett representa o desafio definitivo para Scarlett, que, apesar de resistir à fome, à pobreza e ao desprezo de Ashley, torna-se uma fácil vítima para o charme mordaz de Butler.
Os bastidores do filme foram marcados por atritos entre Leigh e Clark Gable (1901-1960), mas o tempo dissolveu esses dramas pessoais, deixando apenas a obra monumental que merece ser eternizada. “…E o Vento Levou” resiste como uma peça fundamental do cinema clássico, uma história que, embora enraizada em um passado incômodo, ainda nos desafia a refletir sobre ambição, orgulho e redenção.
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