O melhor filme argentino dos últimos 15 anos está no Prime Video Divulgação / Prime Video

O melhor filme argentino dos últimos 15 anos está no Prime Video

A política, em essência, emerge como a tentativa obstinada de impor ordem sobre o caos intrínseco da natureza humana. Esse caos, reflexo de nossa biologia selvagem e indisciplinada, flerta constantemente com o abismo da barbárie. Sem as estruturas civilizatórias que a política proporciona, é plausível imaginar o ser humano moderno regredindo aos instintos primitivos da Idade Média, ou talvez aos três milhões de anos de violência rudimentar da Idade da Pedra, quando a sobrevivência justificava a brutalidade. A história, assim como a vida, avança de forma irregular, alternando progressos limitados e recuos frequentes. Esse movimento pendular, como observado por Marx, não repete os eventos em si, mas os molda em ciclos onde a tragédia de ontem pode ressurgir como a farsa de hoje. E é nesse palco de retrocessos e avanços que os fantasmas do passado, invariavelmente, voltam para testar a resiliência das instituições e dos povos.

Entre os países que ousaram confrontar seus espectros mais sombrios, a Argentina destaca-se por sua coragem em reescrever as regras da justiça histórica. Conhecida por sua postura vanguardista em temas polêmicos — da legalização do aborto ao julgamento de ex-ditadores —, o país tornou-se um case singular de como o clamor popular pode romper as barreiras do conformismo. Nenhuma nação havia antes submetido líderes de ditaduras militares ao escrutínio de tribunais civis, uma proeza que na Argentina foi impulsionada pelo fervor de uma população cansada de silêncio e impunidade. Esse movimento histórico ganhou força após o colapso da última ditadura militar, encerrada em 1983, quando o país começou a destampar o caldeirão de horrores acumulados ao longo de sete anos de repressão.

O contexto político que levou à ascensão do regime militar argentino é tão turbulento quanto revelador. Nos anos que precederam o golpe de 1976, a Argentina mergulhou em uma espiral de instabilidade política, intensificada pela ascensão de Isabel Perón ao poder após a morte de seu marido, Juan Domingo Perón. Isabelita, como era conhecida, assumiu a presidência em meio a uma crise econômica e social devastadora, e suas tentativas de consolidar o poder foram rapidamente sufocadas pela intervenção militar. Em 24 de março de 1976, os militares tomaram o controle do país, iniciando um período de terror que resultaria em aproximadamente 30 mil mortos e desaparecidos — um número incomparável ao registrado durante a ditadura brasileira, que, apesar de durar três vezes mais, contabilizou 434 mortos e desaparecidos.

É nesse pano de fundo histórico que o cineasta Santiago Mitre situa “Argentina, 1985”, um retrato contundente do julgamento histórico dos principais responsáveis pela ditadura militar argentina. Mitre, que ainda era uma criança durante o regime de Jorge Rafael Videla, revisita com precisão didática os eventos que culminaram na condenação de figuras como Videla, Roberto Eduardo Viola, Leopoldo Galtieri e Reynaldo Bignone. O filme explora a monumental tarefa liderada por Julio César Strassera, então promotor público, que conduziu o julgamento mais complexo e abrangente da história do país. Com cinco meses de duração apenas para a coleta de depoimentos de 833 testemunhas, o processo revelou ao mundo as entranhas de um regime que institucionalizou o sequestro, a tortura e o assassinato como ferramentas de controle.

A narrativa de Mitre não apenas exibe o rigor judicial empregado no caso, mas também humaniza as pessoas envolvidas, especialmente Strassera, interpretado magistralmente por Ricardo Darín. Conhecido como o “herói por excelência” do cinema argentino, Darín confere ao personagem a gravidade e o carisma necessários para capturar a complexidade do homem que ousou enfrentar um sistema marcado pelo medo. O roteiro, coescrito por Mitre e Mariano Llinás, equilibra momentos de tensão insuportável com toques sutis de humor, ressaltando a dimensão humana dos eventos retratados. O resultado é uma obra que transcende o gênero de tribunal, funcionando como um lembrete poderoso da importância de resistir à tirania.

Ao olhar para o passado, “Argentina, 1985” também traça paralelos inquietantes com o presente. Quase quatro décadas após o fim da ditadura, a Argentina continua a flertar com discursos populistas e figuras controversas que exploram as fragilidades do sistema democrático. O filme sugere, sem sermões, que a luta pela justiça e pela memória é um processo contínuo, exigindo vigilância constante por parte de uma sociedade que ainda carrega as cicatrizes de seu passado.

A produção de Mitre não é apenas uma peça de entretenimento; é um ato de resistência e um convite à reflexão. Ao revisitar um dos momentos mais decisivos da história argentina, “Argentina, 1985” reafirma a importância de encarar os erros do passado para evitar que a farsa substitua a tragédia. E, enquanto a sociedade argentina continua a oscilar entre avanços e retrocessos, a história nos lembra que a verdadeira justiça não se trata apenas de punir os culpados, mas de garantir que as próximas gerações possam viver livres do peso da repetição.

Filme: Argentina 1985
Diretor: Santiago Mitre
Ano: 2022
Gênero: Biografia/Drama
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★