Ainda Estou Aqui: o que o Brasil poderia ter sido Divulgação / Alile Dara Onawale

Ainda Estou Aqui: o que o Brasil poderia ter sido

Antes de sair de casa para ver “Ainda Estou Aqui”, numa sessão lotada de sexta-feira à noite, vasculhei a pequena estante que guarda materiais da minha pesquisa de um doutorado interrompido. Há cerca de 15 anos, estava clara a existência de uma onda nova de filmes, romances, livros de memórias e pesquisa histórica com foco na ditadura militar do Brasil (1964-1985). Estranha coincidência ou confluência de interesses? O certo é que alguma coisa estava na ordem do dia, o que se acentuou nos anos seguintes.

Fui assistir ao filme de Walter Salles com uma frase na cabeça, tirada do livro “Tempo Passado — Cultura da Memória e Guinada Subjetiva” (2005), da pensadora argentina Beatriz Sarlo. “Um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”, diz a autora que analisa as narrativas e os traumas dos anos ditatoriais da seu país. O que interessa a ela é a passagem de uma fase do sofrimento/denúncia, no calor da hora, para a do pensamento/reflexão na produção cultural de hoje.

A base para o filme de Salles é a vontade de uma pessoa, no caso o escritor Marcelo Rubens Paiva, de capturar em palavras o pesadelo e traduzir o sofrimento dele e de sua família. Um primeiro momento havia sido o relato extraordinário do livro “Feliz Ano Velho” (1982), que conta o acidente do autor (ao ficar paraplégico) e o desaparecimento político de seu pai, Rubens Paiva, em 1971. Os martírios de dois corpos. E o segundo lance foi o livro “Ainda Estou Aqui” (2015), focado na história da mãe Eunice, a mulher que defendeu a memória coletiva e viveu os últimos anos com o mal de Alzheimer.

Beatriz Sarlo
A pensadora argentina Beatriz Sarlo reflete sobre como narrar o passado é uma forma de se apoderar dos pesadelos e transformá-los em reflexão

A obra que inspirou o filme trouxe um foco novo para a reflexão. As narrativas da ditadura priorizaram os guerrilheiros como protagonistas, como se aquele tempo fosse apenas o da luta armada. Marcelo dá um passo adiante ao colocar em primeiro plano a trajetória de sua mãe, Eunice Paiva, e de suas quatro irmãs. Ela e o matriarcado em miniatura que precisou criar para seguir a vida da família e promover a busca sem fim pelo corpo do marido desaparecido.

A sessão de cinema estava lotada por gente de todas as idades, na terceira semana de exibição do filme. Os números já ultrapassaram os dois milhões de espectadores, contrariando a má fama da produção brasileira. Para mim, o filme faz parte do arquivo que já tenho do doutoramento inconcluso. Mas, para jovens, certamente ali está algo novo e pouco conhecido. Revela-se a situação em que esposas e filhos eram presos e pressionados psicologicamente. “Como assim? Alguém entra em sua casa, leva seu pai e ainda te prende?”, dizem os adolescentes no final do filme.

Tempo de reflexão

“Ainda Estou Aqui” propõe o pensamento da longa duração. Não há a exasperação e a urgência do Cinema Novo, do Cinema Marginal e do Tropicalismo, que narraram a ditadura no calor da hora. O tempo atual é o de se apoderar de um pesadelo na esfera privada, no caso o da família Paiva, tão bem elaborado pelos livros de Marcelo. Mas a conexão com o presente está, sem dúvida, no assombro com o retorno dos sonhos coletivos de lei e ordem no Brasil dos anos 2010. Neste momento, engajar-se não é distribuir panfletos políticos, fazer propaganda, é olhar o agora.

ainda estou aqui
Walter Salles conduz a narrativa com calma e profundidade, transformando o passado em uma reflexão sobre o presente I Divulgação / Lais Catalano Aranha

A característica maior do filme é a vontade de pensar, com uma calma e clareza raras em dias de redes sociais frenéticas. Walter Salles evita, a todo custo, a fragmentação e a alegoria narrativas. Quem assiste não precisa fazer o jogo de gato e rato para decifrar enigmas — até porque a história de Rubens Paiva foi bem documentada. Então, por que contar essa história tão conhecida? Neste ponto, entram as mãos do diretor de cinema, dos atores e das atrizes. É preciso voltar a narrar, dar significado a uma situação do passado que é histórica, mas que ressoa no tempo presente.

Um mar de referências surge na tela: Kafka, Antígona, o Graciliano Ramos de “Memórias do Cárcere”, a família de “Cabra Marcado para Morrer” e o diálogo do diretor com o irmão, o também cineasta e escritor João Moreira Salles. Também emerge a atmosfera do cinema de Michelangelo Antonioni e Bernardo Bertolucci, sobretudo no ritmo preciso que se conta a história. Não há pressa, nem a intenção de mostrar algo apenas para demonstrar sofisticação artística. As citações são delicadas e oportunas.

As primeiras cenas do filme são da família Paiva na praia do Rio de Janeiro. Trata-se de um paraíso que vai se perder logo adiante. Vai se romper porque a vida é feita de algo frágil. Eunice (interpretada por Fernanda Torres) nada no mar, dando a entender que está pensando e “mergulhada” em si mesma. Rubens (feito por Selton Mello) está na areia com as filhas e o filho. O que destoa na paisagem são o caminhão do Exército que passa na rua e um helicóptero de guerra sobrevoando a cidade. Alguma coisa está fora da ordem aparente.

O momento seguinte se passa na casa da família na rua da praia. Aquele espaço torna-se o centro da narrativa, o lugar que carrega os significados. Nele, se reúnem os Paiva com amigos que representam a nata da inteligência e serão a base da redemocratização nos anos 1980. Cada uma daquelas figuras daria um filme, a começar pelo casal Gaspa e Dalva, os Gasparian. Os amigos estavam sempre juntos nas festas — algo fundamental no período e que simbolizou os encontros da coletividade e das redes de apoio.

Contra o poder obtuso e suas figuras sinistras, os personagens na casa representam a possibilidade do país decente e esclarecido. Nunca fomos ou parecemos tão inteligentes como naqueles anos. “O início do filme busca recuperar a vitalidade daquele tempo, mostrar aquilo que poderíamos ter sido. Foi esse Brasil possível, original e independente”, disse o diretor numa entrevista recente. Nostalgia? Pode até ser, em vista do quadro contemporâneo. Essa é a reflexão que o filme estimula e o torna, sim, político de uma maneira muito particular.

Prisma familiar

Nas primeiras cenas, fica claro o diferencial do filme de Walter Salles. A escolha do ponto de vista da família Paiva faz toda a diferença, pois mostra que a ditadura não se restringiu à caça de militantes e desceu aos mínimos pontos da sociedade. O impulso de quem narra o período é sempre enquadrar as histórias na forma de uma luta (desigual) entre guerrilheiros e militares, sobretudo uma guerra masculina. São poucas narrativas que têm o protagonismo das mulheres — exceções interessantes são os filmes “Cabra Cega” (2005), de Toni Venturi, e “Zuzu Angel” (2006), de Sérgio Rezende.

Marcelo Rubens Paiva
Marcelo Rubens Paiva transformou a dor pessoal em literatura, trazendo à tona memórias de uma família marcada pela ausência e pela resistência

Ao colocar a família e uma mulher no centro da narrativa, “Ainda Estou Aqui” se aproxima do enquadramento do documentário “Cabra marcado para morrer” (1984), de Eduardo Coutinho. O achado deste filme foi a reconstituição da trajetória de Elizabeth Teixeira, a esposa de um líder rural morto em 1962, e seus filhos. O fio da meada está no próprio filme censurado em 1964, finalizado 20 anos depois e que faz a reconstituição daquela família perseguida.

Em sua busca pelo corpo do marido e pelo reconhecimento de sua morte, Eunice Paiva encarnou a figura de uma Antígona, da tragédia grega de Sófocles. É a persistência de uma mulher para enterrar um morto e se contrapor ao poder estatal. Mas, como bem lembra Judith Butler, essa busca da personagem grega é uma “reivindicação” que, nos termos contemporâneos, significa um trabalho consciente e ativo de luto. Elaborar a memória coletiva e enterrar seus mortos é assim um ato de fundar uma forma de vida.

O Estado é a autoridade que faz, digamos, a gestão do luto. É ele que diz quem está vivo e quem está morto. Promove reparações e punições contra crimes. Sem o aval dele, uma família jamais pode reverenciar, homenagear ou se despedir de um morto. No cinema brasileiro, outra Antígona é a personagem Zuzu Angel, mãe de um dos mais conhecidos desaparecidos políticos da época. E ela mesma acabou sendo vítima de um estranho acidente de carro, depois reconhecido como atentado político.

Em sua trajetória, Eunice fornece um fio narrativo para esclarecer o sentido da História ou daquele pesadelo. Uma das sequências mais fortes do filme é a prisão da personagem e da filha adolescente de 15 anos de idade. Os gritos de dor de quem sofre as torturas ecoam nos corredores de um batalhão no Rio de Janeiro, transformado em castelo kafkiano. Bastam as vozes e os ruídos para sentir o drama da situação. Na sequência seguinte, Eunice volta para casa e toma um banho. É o momento em que se expõe um corpo muito magro e que enfrentou a tortura psicológica.

Um universo central é o das crianças, ou seja, de Marcelo e suas quatro irmãs. Ficou já bem conhecida a cena em que Eunice se recusa a fazer uma foto com a família de semblante triste. Ela diz que a família vai aparecer sorrindo no registro da imprensa — ela se apodera do pesadelo e diz quem manda. Ao contrário da desagregação dos Teixeira em “Cabra marcado”, os Paiva conseguem manter a unidade, por mais que laços familiares sejam fragilizados. O filme de Walter Salles é justamente uma defesa do que existe de frágil na vida.

Memória invencível

A elaboração do luto coletivo no Brasil tornou-se uma tarefa interditada ao longo dos anos e décadas. É nessa lacuna que emerge a produção cultural a partir dos anos 1980, para preencher o vazio institucional da memória. Aliás, nada foi mais avacalhado e jogado para baixo do que o projeto da Comissão Nacional da Verdade, criada em novembro de 2011. Nesse contexto, é pedagógico acompanhar a trajetória de Eunice, que tem o trabalho inicial de buscar o corpo desaparecido do marido e que segue adiante na defesa de povos indígenas.

A cena que reproduz a entrega à família do atestado de óbito de Rubens Paiva é o salto temporal de “Ainda Estou Aqui”. Nos anos 1990, após forte pressão internacional, o governo instalou uma comissão de mortos e desaparecidos. Trata-se do único movimento aceito e possível de reparação (mesmo que financeira) e de reflexão do que ocorreu entre 1964 e 1985. Mas é o momento que se instauram a guerra cultural e uma polarização política que vai desaguar com força nos anos 2010.

Podemos apontar três filmes de altíssimo padrão e comunicação com o público ao tratar da ditadura: “Terra em Transe” (1967) de Glauber Rocha com a agonia dos intelectuais, “Cabra Marcado para Morrer” com a vida dos pobres e agora “Ainda Estou Aqui”. A obra mais ousada é o filme “Corpo” (2007), de Rubens Rewald e Rossana Foglia. A atual repercussão do filme de Walter Salles e a aceitação por parte de jovens, em torno de 20 anos da idade, indicam para uma viravolta positiva de sentimento — coincidentemente quando a expressão “Golpe de Estado” retorna corriqueiramente ao vocabulário político e ao debate na opinião pública brasileira.

Os créditos finais de “Ainda Estou Aqui” trazem questões e informações que remetem a um “depois da História”. Ao som da canção de Erasmo Carlos (“É Preciso dar um Jeito, meu Amigo”), a câmera passeia pela casa vazia dos Paiva que é cenário de boa parte do filme. Aquele tempo de festas, de inteligência, se foi e não volta mais — parece dizer o diretor. A casa abandonada remete às cenas da velha mansão dos Moreira Salles no Rio de Janeiro, que é o foco do belíssimo documentário “Santiago” (2007), de João Moreira Salles.

Vergonha que transforma

O diálogo entre os irmãos Salles aparece também no uso de imagens em formato super-8 em “Ainda Estou Aqui”. João reuniu em “No Intenso Agora” (2017) um material feito por sua mãe (Elisa Margarida Gonçalves), numa visita à China em 1966. O filme analisa as transformações daquela época no mundo, mesclando a excursão chinesa e os eventos de maio de 1968 em Paris. Também esse formato foi usado em “Santiago”, que mostra a família Moreira Salles na casa carioca.

Carlo Ginzburg
O historiador Carlo Ginzburg vê a vergonha como um vínculo mais forte que o amor

O que fica do filme “Ainda Estou Aqui” para o público? Ou para usar a ideia de Giorgio Agamben, o que resta dos tempos da ditadura? Pelos acontecimentos recentes, podemos dizer que restou muita coisa — até coisas demais. Na saída do cinema, ouvi de uma jovem que aquela história era muito triste, pensando naquele pai que se dignou a dar um depoimento à polícia, sem culpas, e nunca mais voltou para casa. Um pai que, como Graciliano Ramos nos anos 1930, se recusou a fugir e sabia eticamente que estava fazendo o correto.

Na primeira parte de “Ainda Estou Aqui”, as cenas provocam um sentimento de vergonha, pela banalidade com que a família Paiva foi tratada. Pensei no uso que Carlo Ginzburg faz da vergonha como fator de identidade de um povo. Prender uma mãe e uma criança é algo vergonhoso. Não se constrói um lugar civilizado a partir de uma atitude dessas. Não entregar o corpo de preso político só acrescenta mais ingredientes. E o pior: jamais contar o que foi feito do corpo da vítima.

“Há muitos anos, percebi de repente que o país a que pertencemos não é, como quer a retórica mais corrente, o país que amamos, e sim aquele do qual nos envergonhamos. A vergonha pode ser um vínculo mais forte que o amor. Repetidas vezes testei minha descoberta com amigos de diferentes países: todos reagiram da mesma forma — com surpresa, seguida imediatamente de completa concordância, como se minha sugestão fosse uma verdade evidente por si só”, escreveu Ginzburg.

Sentir vergonha por situações, como a que foi submetida a família Paiva, pode ser um início. O luto coletivo que se elabora e se tem consciência. Quem sabe, não se constrói um país diferente — mesmo que os fatos nos desmintam. Os filmes de Lúcia Murat (“Que Bom te Ver Viva”, “Quase Dois Irmãos”, “Uma Longa Viagem”) são os exemplos de alto nível de como narrar aqueles tempos. As pessoas dançando na festa de “Ainda Estou Aqui” tinham um projeto para depois do sonho ruim. Queriam se apoderar do pesadelo e controlá-lo, se pensarmos como Beatriz Sarlo.