Desmistificando o preconceito: a importância de Harry Potter como literatura legítima

Desmistificando o preconceito: a importância de Harry Potter como literatura legítima

A literatura infantojuvenil, apesar de sua importância cultural e educacional, historicamente sofre com o preconceito e a desvalorização pela academia. Obras como “Harry Potter”, de J.K. Rowling, que encantam milhões de leitores ao redor do mundo, muitas vezes são relegadas ao segundo plano em estudos literários mais tradicionais. Esse tratamento inferior se baseia em uma noção equivocada de que a literatura para jovens carece da complexidade e profundidade das grandes obras canônicas, quando, na verdade, ela desempenha um papel fundamental na formação de leitores críticos e na introdução de temas relevantes para todas as idades.

A resistência da academia em reconhecer o valor da literatura infantojuvenil reflete uma visão elitista que privilegia certos gêneros e estilos literários, ignorando a influência social e emocional que “Harry Potter” exerce sobre seus leitores. Os críticos argumentam que essa produção literária não deve ser levada a sério, pois se destina a um público jovem e muitas vezes não segue os parâmetros estéticos consagrados. No entanto, esse tipo de avaliação ignora as camadas temáticas complexas e a habilidade narrativa envolvidas na criação de mundos fictícios que ressoam com questões universais, como o bem e o mal, o poder, a amizade e a lealdade.

J.K. Rowling
A série Harry Potter, de J.K. Rowling, foi traduzida para mais de 80 idiomas, incluindo línguas raras como basco, groenlandês, latim e grego antigo

A literatura infantojuvenil, em particular a de fantasia, explora questões filosóficas e morais profundas, frequentemente disfarçadas em uma narrativa aparentemente simples. O universo criado por J.K. Rowling é um reflexo do nosso próprio mundo, com suas injustiças, preconceitos e lutas por poder. Ignorar a relevância desses temas por se tratar de uma obra “para jovens” subestima a capacidade intelectual dos leitores adolescentes, que, muitas vezes, encontram nesses livros uma forma de compreender e questionar o mundo ao seu redor.

Além disso, a contribuição da literatura infantojuvenil para a formação do hábito de leitura não pode ser ignorada. “Harry Potter” foi responsável por fazer uma geração inteira de jovens voltar a ler com entusiasmo, em uma época em que a leitura estava sendo substituída por outros tipos de entretenimento mais imediatos, como a televisão e os videogames. Obras como essa constroem a ponte entre o leitor iniciante e o mundo mais vasto da literatura, sendo muitas vezes o ponto de partida para o engajamento com livros mais complexos.

A academia, ao desvalorizar esse tipo de literatura, também perde a oportunidade de analisar como ela se insere em discussões sobre cultura de massa e mercado editorial. O sucesso de “Harry Potter” transcende a mera leitura de entretenimento, refletindo transformações sociais e econômicas no consumo de cultura literária. Ao ser relegada a um papel menor, a literatura infantojuvenil é tratada como produto comercial, desconsiderando-se o impacto cultural que ela provoca em várias esferas da vida cotidiana e a forma como molda imaginários sociais.

Há também uma certa ironia na rejeição acadêmica de “Harry Potter”, especialmente quando se considera que grandes obras literárias do passado, hoje respeitadas e estudadas, muitas vezes também foram vistas com desconfiança por seus contemporâneos. Charles Dickens, por exemplo, que escrevia para o público popular, enfrentou críticas semelhantes, e suas obras, embora amplamente lidas, eram consideradas de menor valor literário. No entanto, com o tempo, seu trabalho foi reavaliado, e hoje Dickens é considerado um dos maiores romancistas da língua inglesa.

Outro ponto importante é que o preconceito contra a literatura infantojuvenil muitas vezes reflete uma visão limitada do que a literatura deveria ser ou alcançar. Ao insistir que apenas livros com uma certa profundidade filosófica explícita merecem a atenção acadêmica, perde-se de vista o fato de que a literatura é uma experiência diversa e subjetiva. A magia de “Harry Potter” não reside apenas em sua história, mas também na forma como ela se conecta emocionalmente com seus leitores, criando laços afetivos que podem durar uma vida inteira.

Além disso, é injusto avaliar o mérito literário de obras infantojuvenis usando os mesmos critérios que se aplicam à literatura adulta. A profundidade de uma narrativa não deve ser medida apenas pela complexidade linguística ou pelas referências filosóficas, mas também pela capacidade de engajar e transformar seus leitores. “Harry Potter” desafia convenções ao misturar temas universais com uma narrativa acessível, o que amplia seu apelo e sua relevância cultural, algo que a academia não deveria ignorar.

O preconceito acadêmico contra a literatura infantojuvenil não só é equivocado, como revela uma compreensão restrita da literatura e de seu impacto. Obras infantojuvenis continuam a moldar gerações de leitores, proporcionando-lhes não apenas entretenimento, mas também uma ferramenta poderosa para refletir sobre questões profundas e transformadoras. É hora de a academia abandonar suas reservas e abraçar a riqueza que a literatura infantojuvenil tem a oferecer, reconhecendo seu valor tanto estético quanto cultural.

A comparação entre J.K. Rowling e J.R.R. Tolkien frequentemente serve como um argumento elitista, destinado a desqualificar a autora de “Harry Potter” em benefício de uma defesa preconceituosa das hierarquias literárias. Tolkien, cujas obras “O Senhor dos Anéis” e “O Hobbit” são indiscutivelmente marcos da literatura de fantasia, é frequentemente exaltado como um autor “superior”, enquanto Rowling é relegada ao status de autora de entretenimento popular. Essa comparação, no entanto, ignora não só as diferenças de contexto e estilo entre ambos, mas também a ideia equivocada de que só é possível existir um cânone único para a fantasia literária. Colocar Tolkien acima de Rowling sugere que a qualidade literária está sempre atrelada a uma profundidade mitológica ou a uma linguagem mais densa, ignorando o fato de que a literatura é plural e diversificada.

Essa distinção hierárquica é muitas vezes utilizada para proteger valores tradicionalistas e perpetuar preconceitos dentro do campo literário. Ao elogiar Tolkien e depreciar Rowling, críticos não apenas valorizam as estruturas narrativas mais complexas e os temas míticos, mas também deixam implícito que a fantasia precisa se afastar do popular e do acessível para ser considerada legítima. No entanto, a escolha de Rowling por uma narrativa mais ágil e uma linguagem mais direta não a torna uma autora menor. Pelo contrário, sua habilidade em criar um universo que dialoga com questões sociais contemporâneas, como preconceito, opressão e autoritarismo, a coloca em pé de igualdade com Tolkien em termos de relevância cultural, embora haja, sim, uma distância estética, estrutural e estilística entre eles. A rejeição acadêmica de Rowling muitas vezes é uma forma disfarçada de elitismo literário, que prefere obras de difícil acesso, distantes das massas, como um sinal de prestígio.

J.K.Rowling
J.K.Rowling: escritora que criou um universo cativante, abordando temas como amizade, coragem e a luta contra o preconceito

Além disso, é crucial reconhecer que tanto Tolkien quanto Rowling representam abordagens diferentes, mas complementares, dentro da fantasia. Enquanto Tolkien construiu um universo profundamente influenciado pela mitologia nórdica e pelo épico clássico, Rowling construiu sua obra com base em questões sociais, morais e emocionais que ecoam com as experiências cotidianas de seus leitores. A diferença de tom e estilo entre os dois não deveria ser vista como um critério de superioridade ou inferioridade, mas sim como uma celebração da diversidade dentro do gênero. Colocar Tolkien “acima” de Rowling não faz justiça ao impacto cultural e literário que ela causou e serve apenas para perpetuar um preconceito acadêmico contra a literatura mais acessível, que se conecta com um público mais amplo.

A série de Rowling não conquistou o sucesso mundial apenas graças a um esforço midiático. O conjunto da obra tem qualidades indiscutíveis e amplas. Trata-se de uma história construída com simplicidade, mas com muita autenticidade. Vê-se ali o empenho claro de uma escritora que escreve com convicção sua literatura, acredita em seus personagens e em seu estilo de comunicação, conseguindo uma empatia universal com seu público jovem ou com adultos de mente aberta, amor pela arte e sem pomposidade “jeca” para ostentar poses aqui e ali.

Vejamos dez grandes qualidades do trabalho de J. K. Rolling:

1 — Desenvolvimento de personagens complexos: a série oferece personagens que evoluem ao longo dos livros, apresentando camadas de complexidade emocional e moral. Harry, Hermione e Ron, por exemplo, são muito mais do que jovens bruxos; eles enfrentam desafios que refletem questões universais, como o amadurecimento, as dificuldades da amizade e o enfrentamento de traumas pessoais. Essa profundidade permite aos leitores não apenas se identificarem com eles, mas também refletirem sobre suas próprias jornadas.

2 — Exploração de temas universais: a série aborda temas como preconceito, opressão, sacrifício e coragem, que vão além da superfície da história de magia. A luta contra o regime de Voldemort, com suas ideologias de supremacia racial e tirania, é uma metáfora poderosa sobre a resistência ao totalitarismo e à injustiça social. Esses temas tornam a obra uma leitura relevante e rica em significados para leitores de todas as idades.

3 — Construção de um mundo imersivo: o universo mágico criado por J.K. Rowling é vasto, detalhado e cativante. Hogwarts, o Ministério da Magia e até locais como o Beco Diagonal são descritos com tal riqueza que parecem reais. Esse mundo bem construído proporciona uma experiência de leitura imersiva, oferecendo um refúgio e um lugar de fascinação para milhões de leitores.

4 — Capacidade de despertar o hábito da leitura: “Harry Potter” foi fundamental para reacender o entusiasmo pela leitura em jovens e adultos. Muitas pessoas que cresceram com a série desenvolveram o gosto pela literatura por meio desses livros, que, por sua narrativa envolvente, cativam e incentivam o leitor a explorar mais o mundo dos livros.

5 — Equilíbrio entre entretenimento e reflexão: apesar de ser extremamente divertido, com aventuras emocionantes e momentos de humor, o livro também faz os leitores refletirem sobre questões morais e filosóficas. As escolhas dos personagens, especialmente de Harry, muitas vezes envolvem dilemas éticos que exigem ponderação sobre o bem, o mal e as consequências das decisões.

6 — Enfrentamento de traumas e perda: ao longo da série, Harry e outros personagens precisam lidar com perdas devastadoras, como a morte de amigos e familiares. Essas experiências são abordadas de maneira sensível, permitindo que os leitores reflitam sobre a dor, o luto e a recuperação, e como essas questões fazem parte da vida humana.

7 — Personagens femininas fortes e diversificadas: J.K. Rowling apresenta personagens femininas complexas e poderosas. Hermione Granger, Ginny Weasley e Luna Lovegood, por exemplo, são modelos de força, inteligência, lealdade e individualidade. Elas desempenham papéis centrais na trama, inspirando leitores com sua coragem e resiliência.

8 — Retrato da amizade e lealdade: a série é uma celebração da amizade, mostrando como o apoio mútuo entre amigos pode superar desafios enormes. A relação entre Harry, Hermione e Ron é um exemplo de companheirismo que resiste a brigas, invejas e desentendimentos, provando que lealdade e confiança são fundamentais nas relações humanas.

9 — Ensinamentos sobre a aceitação do outro: a série aborda questões como preconceito e aceitação da diversidade de maneira sensível, principalmente na forma como diferentes tipos de bruxos e criaturas mágicas são tratados. O preconceito contra “sangues-ruins” e elfos domésticos, por exemplo, é uma metáfora clara sobre discriminação no mundo real, incentivando os leitores a questionar suas próprias atitudes em relação ao “outro”.

10 — Capacidade de unir gerações: a série transcende faixas etárias e pode ser apreciada por leitores de todas as idades. As crianças e adolescentes se envolvem com a magia e as aventuras, enquanto os adultos apreciam as camadas mais profundas da trama e os temas complexos. Isso torna a série uma leitura universal, que continua a unir gerações em torno de uma paixão literária compartilhada.

“Harry Potter” é muito mais do que uma história de fantasia; é uma porta de entrada essencial para o vasto universo literário, especialmente para leitores jovens que, muitas vezes, encontram na saga sua primeira grande experiência com livros. Ao apresentar temas complexos, como a luta contra o mal, o preconceito e a importância da amizade, de maneira acessível e envolvente, os livros de J.K. Rowling conseguem captar a atenção de leitores que, após se imergirem nesse universo, ficam mais inclinados a explorar outras obras literárias. É inegável o impacto cultural e educativo da série, que desperta o prazer pela leitura de forma natural, incentivando o pensamento crítico e o hábito de refletir sobre questões profundas.

A saga constrói leitores não apenas de fantasia, mas de literatura como um todo, ao cativar o público com sua narrativa rica e personagens complexos. Ao envolver temas universais e tramas que estimulam a imaginação e o raciocínio, ela oferece a base para que os leitores se sintam à vontade para explorar outras obras literárias, tanto contemporâneas quanto clássicas. Defender a leitura e a propagação de “Harry Potter” é defender a formação de uma geração de leitores mais engajados e preparados para lidar com as questões do mundo real através da lente da literatura.

Carlos Augusto Silva

É professor de Literatura e História da Arte. Licenciado em Letras e História, é bacharel em Literatura e Especialista em Estética e História da Arte. Mestre em Estudos Literários, cursa o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. É autor dos livros “Dicionário Proust”, “Proust e a História” e “Opção Crítica”.