“Pieces of a Woman” marca a estreia de Kornél Mundruczó no cinema em língua inglesa com uma narrativa que desafia os limites da intimidade e do sofrimento. A obra inicia com um plano-sequência imersivo, meticulosamente elaborado, onde cada diálogo carrega uma frieza calculada — nada é por acaso. Nos primeiros 25 minutos, testemunhamos um momento crucial na vida de um casal, onde Martha (Vanessa Kirby), Sean (Shia LaBeouf) e a parteira Eva (Molly Parker) atravessam uma experiência visceral e irreversível.
O plano-sequência captura com brutalidade e graça a dimensão do nascimento de Yvette, filha do casal. Martha, dilacerada pela dor do parto domiciliar, alterna entre elogios à beleza do marido e gritos de sofrimento. Quando a pulsão da criança se altera e a vida se esvai antes de começar, a perda é quase palpável. Yvette não sobrevive, e com ela desmoronam as estruturas que sustentavam aquela família e o relacionamento entre Martha e Sean.
Porém, a tragédia é apenas o começo. A tensão familiar se intensifica com a presença de Elizabeth (Ellen Burstyn), a mãe de Martha, marcada por traumas da Segunda Guerra Mundial. Criada sob o peso da perseguição nazista, Elizabeth carrega uma rigidez implacável. Sua relação tóxica com Martha se revela cruelmente no cemitério, onde a dor da perda é substituída por discussões mesquinhas sobre a grafia do nome da criança.
Conflitos se acumulam à medida que Sean busca compensação legal, aliciando a prima advogada Suzanne (Sarah Snook) — uma escolha que traz traição e caos. O jantar na casa de Elizabeth é uma explosão silenciosa de ressentimento e manipulação, com a mãe oferecendo dinheiro para afastar Sean da vida da filha. Sean, em colapso, cede à sedução e afunda ainda mais na espiral de autodestruição.
O roteiro conduz Martha por um labirinto de desespero e redenção. Com cada pedaço de sua humanidade dilacerado, ela se transforma em um espectro de si mesma. Vanessa Kirby captura com maestria a essência dessa mulher despedaçada que luta para se recompor. Em meio às cinzas da dor, surge um simbolismo poderoso: a maçã. A fruta, com suas sementes plantadas por Martha, torna-se um ícone de renascimento e busca por conhecimento.
Inspirada pelo “Gênesis”, a narrativa sugere uma Eva moderna, marcada pela perda e pela promessa de reconstrução. Como em um ritual de purificação, Martha transforma a dor em resiliência, cultivando vida onde havia apenas morte. À medida que as sementes germinam, ela também se refaz, resgatando algo essencialmente humano.
A sequência final é um testamento à capacidade de renovação: uma mulher que, mesmo aos pedaços, reencontra a força para florescer. Martha Weiss representa uma das construções mais contundentes de uma personagem que, entre dor e redenção, busca na beleza trágica da vida uma razão para seguir. Kornél Mundruczó entrega um drama que, com sofisticação e brutalidade, nos lembra que a vida é um campo de batalhas, mas também de promessas.
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