Um homem leva uma vida pacata em uma pequena vila onde mora com a família, administrando uma modesta casa funerária e realizando trabalhos como carpinteiro. A serenidade do lugar parece ser o grande trunfo de sua rotina, mas essa tranquilidade é abruptamente interrompida com a chegada de um visitante indesejado. O estranho, que inicialmente desperta desconfiança, decide permanecer, desencadeando uma cadeia de eventos que abala profundamente a comunidade. O sossego é substituído por tensões crescentes, impulsos descontrolados e uma atmosfera de caos e desordem que culmina em destruição. Gradualmente, uma nova ordem social emerge, em que a submissão ao Estado dá lugar à barbárie, e os que poderiam se opor — por medo ou conveniência — escolhem o silêncio. Nesse cenário de colapso moral, a lei do mais forte impera, deixando o vilarejo à beira do abismo.
É nesse contexto que o diretor irlandês Ivan Kavanagh constrói “Terra Sem Lei” (2019), um western que explora as contradições humanas em um ambiente condenado pela decadência material e espiritual. Inspirando-se em clássicos do gênero, como “Por um Punhado de Dólares” (1964), de Sergio Leone, que por sua vez adaptou “Yojimbo” (1961), de Akira Kurosawa, Kavanagh recria um universo igualmente brutal e sem esperança. No entanto, enquanto Leone e Kurosawa exploram a dinâmica ambígua entre heróis e vilões, Kavanagh vai além, recusando a ideia de redenção ou aliança entre os opostos. Seu protagonista é mais um sobrevivente do que um redentor, perdido em um cenário onde os conceitos de moralidade e justiça são irrelevantes.
Patrick Tate, interpretado por Emile Hirsch, é o personagem central dessa narrativa. Carpinteiro e dono de uma funerária em Garlow, ao norte da Trilha da Califórnia, ele leva uma vida simples ao lado da esposa Audrey (Déborah François) e de seus dois filhos. Embora irlandês de origem, sua família se adapta aos costumes do local, onde os Dez Mandamentos são constantemente evocados pelo reverendo Samuel Pike (Danny Webb), figura autoritária em um lugar marcado por hipocrisias e relações de poder veladas. Esse frágil equilíbrio é rompido com a chegada de Albert, o Holandês, vivido por John Cusack. Com uma presença ameaçadora, Albert é a personificação do caos. Vestido inteiramente de preto e usando um chapéu de abas largas que reforça sua aura intimidadora, ele se recusa a se submeter às convenções do vilarejo e confronta abertamente sua moralidade superficial.
A presença de Albert não é apenas disruptiva; é um catalisador para a degradação total. Ele instala um prostíbulo ao lado da igreja, zombando da falsa piedade local. Uma cena emblemática mostra o bandido oferecendo um sermão distorcido à senhora Crabtree (Anne Coesens), que busca trabalho mas se recusa a aceitar suas condições. Nessa atuação, Cusack entrega um antagonista que é tanto hipnotizante quanto repulsivo, expondo a fragilidade das convenções sociais e religiosas que mantinham a comunidade unida. A relação entre ele e Patrick Tate é central para a narrativa, culminando em um confronto final violento que simboliza a luta entre os resquícios de civilidade e o colapso definitivo.
Diferentemente dos anti-heróis icônicos de Sergio Leone, que equilibravam cinismo e carisma, Tate é um homem comum, compelido pelas circunstâncias a enfrentar o que há de pior na humanidade. A performance de Emile Hirsch captura a essência desse personagem, conferindo-lhe uma profundidade que transcende os clichês do gênero. Já a direção de Kavanagh não apenas homenageia os mestres do western, mas também os subverte, oferecendo uma perspectiva crua e contemporânea sobre temas universais como poder, corrupção e sobrevivência.
“Terra Sem Lei” é, ao mesmo tempo, uma releitura e uma desconstrução do gênero western. Em suas imagens finais, o embate entre Tate e Albert ocorre sob o olhar de um Cristo crucificado, cuja figura ensanguentada resume a tragédia de uma comunidade que sucumbiu às suas próprias falhas. Essa cena é um dos momentos mais perturbadores do cinema recente, um retrato visceral de como a violência e a degradação moral podem se tornar inseparáveis em um mundo sem leis nem esperanças. Ivan Kavanagh entrega um filme que, longe de oferecer respostas ou redenções fáceis, desafia o espectador a refletir sobre os limites da humanidade em tempos de desespero.
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