No distópico e perturbador universo de “Amores Canibais”, a diretora Ana Lily Amirpour ergue um cenário onde o deserto texano é palco de uma sobrevivência feroz e paradoxal. A trama nos coloca frente a uma realidade em que o grotesco se mescla com o cotidiano — passeios de skate e festas se desenrolam em meio a ruínas e poeira, sugerindo uma tentativa desesperada de manter alguma forma de normalidade. Arlen (Suki Waterhouse), solitária e enigmática, busca refúgio sob um sol impiedoso, vagando por um deserto repleto de vestígios que evocam um “Mad Max” menos estilizado, mas igualmente brutal.
Amirpour utiliza locações peculiares para dar vida a esse cenário: o cemitério de aviões de Lancaster e a desolada vila Comfort, às margens do Salton Sea, compõem uma paisagem que desafia a linha entre realidade e alucinação. Com uma estética de ares vintage e proposital desleixo, a diretora provoca um jogo de percepções no qual o tangível e o imaginário se fundem, criando uma atmosfera simultaneamente onírica e visceral.
Arlen, cuja história pregressa permanece oculta, é um símbolo de fragilidade e força. Mutilada no início da narrativa — perdendo um braço e uma perna —, ela encarna a resiliência brutal exigida por esse mundo. Sua busca por vingança torna-se a espinha dorsal da trama, uma jornada que expõe a natureza cruel dessa nova realidade. Ao seu redor, figuras igualmente enigmáticas preenchem a paisagem, incluindo Miami Man (Jason Momoa), cuja sobrevivência é sustentada pelo ato grotesco de consumir outros seres humanos.
A família de Miami Man — Maria (Yolonda Ross) e a filha Honey (Jayda Fink) — vive em meio a destroços de um avião, onde a linha entre necessidade e sadismo é perigosamente tênue. O canibalismo é mais do que um elemento chocante: é uma metáfora poderosa para a degradação humana, refletindo um desespero primal e a indiferença brutal dos que são mais fortes. Quando Arlen se vê diante da mulher responsável por sua mutilação, a vingança torna-se inescapável e sangrenta.
A tensão atinge seu auge quando Arlen mata Maria na frente da filha, assumindo um papel maternal forjado na violência. A cena gerou debates acalorados sobre racismo e representações raciais, questionando até que ponto a narrativa de Amirpour aborda essas questões de forma consciente. A diretora, em resposta, alegou que o foco estava na capacidade humana de destruição mútua e no ciclo interminável de violência justificada pela vingança.
O elenco é enriquecido por personagens excêndricos que intensificam o clima surreal: O Gritador (Giovanni Ribisi), O Ermitão (Jim Carrey) e O Sonhador (Keanu Reeves) acrescentam camadas à narrativa, evocando uma fusão entre a brutalidade estilizada de Tarantino e a bizarrice alucinógena de “Alice no País das Maravilhas”. Amirpour cria uma realidade onde a brutalidade e o absurdo coexistem, desafiando os limites morais e emocionais dos espectadores.
“Amores Canibais” é uma reflexão ácida sobre a sobrevivência, a degradação e a vingança em um mundo que perdeu suas últimas áncoras de civilidade. Um convite a questionar até onde somos capazes de ir para nos mantermos vivos e quais preços estamos dispostos a pagar nesse processo.
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