Sob a direção do consagrado Bille August, vencedor da Palma de Ouro em Cannes por duas ocasiões, “Um Homem de Sorte” é uma obra que carrega um profundo vínculo pessoal com seu criador. A produção, que levou oito anos para ser concluída, contou com a colaboração do filho do cineasta, Andreas August, no desenvolvimento do roteiro. Inspirado no romance homônimo de Henrik Pontoppidan, laureado com o Nobel de Literatura, o filme transcende a adaptação literária para refletir traços biográficos de seu diretor, especialmente na figura do protagonista, Per (Esben Smed).
Bille August revelou que sua relação com o pai influenciou a construção narrativa do longa, assim como marca a trajetória de Per. Órfão de mãe aos oito anos, o cineasta foi criado por um pai psicólogo, cujos métodos rígidos moldaram uma infância desafiadora. Esse pano de fundo emocional encontra eco na jornada do protagonista, que, ao sair da casa paterna, busca não apenas independência, mas também uma ruptura definitiva com os valores rígidos que o aprisionavam.
No centro da narrativa, Per é um jovem engenheiro de mente brilhante, que foge do controle sufocante de seu pai, um clérigo austero, ao ingressar na Universidade de Copenhagen. Determinado a construir seu futuro, ele rapidamente se destaca por sua inteligência e projetos revolucionários, que o conectam a figuras influentes da sociedade dinamarquesa. No entanto, sua ascensão não é isenta de controvérsias. A ambição que o impulsiona revela também um lado sombrio, marcado por ganância, frieza e um orgulho que muitas vezes o coloca em rota de colisão com aqueles ao seu redor. A relação com Jakobe (Katrine Greis-Rosenthal), herdeira de uma família abastada e figura central em sua trajetória, é emblemática desse conflito: mais uma peça em sua estratégia do que um vínculo genuíno.
O filme explora, com profundidade, as camadas complexas de Per. Embora ele seja admirável por sua inteligência e tenacidade, sua incapacidade de demonstrar empatia e o desprezo pelos valores cristãos herdados do pai revelam um personagem em guerra consigo mesmo. Essa aversão à religiosidade, associada às memórias dolorosas de sua criação, torna Per um antagonista das convenções que ele considera repressivas. Contudo, essa rebeldia não vem sem custo: a inquietação que o define é também sua maior prisão, impedindo-o de encontrar paz ou satisfação duradoura.
Esteticamente, “Um Homem de Sorte” impressiona pela precisão técnica. A cinematografia captura com maestria as paisagens idílicas da Dinamarca, enquanto a cenografia e os figurinos recriam com fidelidade o período histórico. As performances são igualmente marcantes, contribuindo para a densidade emocional da narrativa. Contudo, o ritmo do filme, que se estende por quase três horas, pode testar a paciência do público, especialmente devido ao foco prolongado nos envolvimentos românticos de Per.
No entanto, é essa ambivalência que torna Per tão fascinante. Ele não é um herói idealizado, mas um reflexo de contradições humanas universais: ao mesmo tempo genial e destrutivo, visionário e egocêntrico. Sua trajetória é tanto um estudo de caráter quanto uma crítica às dinâmicas de poder e privilégio que moldam nossas escolhas e destinos. “Um Homem de Sorte” nos desafia a enxergar a complexidade do protagonista não como algo distante, mas como um espelho de nossas próprias inquietações e ambições.
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