Ânus glicosado

Ânus glicosado

Fazia a necropsia de um mar morto quando fui surpreendido por respingos do canal da mancha no estreito de gibraltar. Os erros próprios praticados na surdina eram sempre nominados com letras minúsculas. Mesmo chapado pelo pico das agulhas negras, me aborreci com o grave incidente geográfico. Definitivamente, a morte em vida não era para amadores. Odiava-me naquele fim de linha. Estava vivendo a pior idade numa fase de volta às fezes, a qual era desfraldada entre cocô e lysoform, alimentando com sondas de marte os sonhos descartáveis, artríticos, claudicantes, prestes a caducar com o advento alvissareiro da falência múltipla dos órgãos sensoriais. Se eu ainda sentisse saudades de quem eu fora, se eu me alimentasse com as migalhas do pão de açúcar, seria minimamente libertado daquela imundícia particular compulsória ao ser agraciado pelos elevados índices de formigas no ânus glicosado e pela demência irreversível, até que a última luz se apagasse no quarto escuro da decrépita senectude. Vivia os derradeiros estertores de uma existência calcada pelo trabalho árduo, duro, mal remunerado e pela insignificância absoluta. Em menos de cinquenta anos, eu sequer seria lembrado. Pior que isso: não seria nem mesmo um retrato na parede, conforme descreveu o poeta Carlos Drummond. Naquela altura da vida eu já tinha aprendido que a comparação era a chave da infelicidade. Autossabotagem: sempre fora muito hábil em praticá-la. Meti uma faixa de gaza na cabeça para estancar o derramamento de sangue que já durava séculos, mas a sangria simplesmente não parava. Pensei em escapar do bombardeio de carniças da minha memória putrefata saltando o famigerado muro das lamentações, mas, lamentavelmente, estava alto demais para ser transposto. Eu estava alto demais para transpô-lo. Aguardava novas instruções de extraterrestres sentado numa pedra do vale da lua na chapada dos veadeiros. Ultimamente, um veado velho que estivera presente no festival de woodstock em 1969 andava me drogando com sementes de fé colhidas a partir da lavra escandalosa e violenta do velho testamento. Só me restava para o momento testar a própria dignidade e rastejar como um vencido, padecer como um moribundo sob os guinchos respiratórios asfixiantes decorrentes das palavras emboloradas que invadiam os meus olhos e dar vazão ao desejo insano de pichar a muralha da china com palavras de ordem em prol do amor universal. Uma balela sem tamanho, tendo em vista que há milênios o ódio estava acima de todas as coisas, como se fora uma espécie de divindade. Aliás, com o estorvo de deus concluiria aquela tarefa infrutífera e profana em mil e uma noites, lambendo as minas de sal da rússia, fornicando as grutas de mármore do chile, jogando água fora da bacia das almas e da cachoeira do lamento na romênia. Lamentavelmente, o epílogo que se desenhava para mim era geográfica, topográfica e humanamente humilhante, ou seja, subir de gatão a calçada do gigante na irlanda para pedir perdão a uma nuvem passageira antes que a fé se transformasse em água. Justo eu, um ateu velado que já tinha nadado de braçadas na baía de todos os santos. Nunca fui santo, obviamente. O único prazer que eu pressentia depois de desencarnar dos dentes um sorriso invulgar foi engasgar a garganta do diabo com a maçã que ninguém mais mordia desde o fatídico conluio amoroso entre adão e eva no paraíso do norte. Sorte que ninguém estava entendendo nada nada nada do que eu escrevia, muito menos, o rumo distorcido e incoerente que a minha morte tinha tomado.  

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.