Um dos melhores filmes brasileiros da última década, injustamente deixado de fora do Oscar, na Netflix Divulgação / Vitrine Filmes

Um dos melhores filmes brasileiros da última década, injustamente deixado de fora do Oscar, na Netflix

Velhos, crianças e animais de estimação compartilham peculiaridades que transcendem suas diferenças. Entre elas, destacam-se a teimosia inabalável quando confrontados e o apego visceral ao espaço que reconhecem como lar. Clara Bragança, protagonista de “Aquarius” (2016), insere-se no primeiro grupo com convicção, mas sem o peso de pudores impostos pela idade. Pelo contrário, é uma mulher que se apropria de sua maturidade como força, ciente de suas ambições, inquietações e do custo de suas escolhas. 

Sob a direção perspicaz de Kleber Mendonça Filho, Clara emerge como uma representação singular da mulher contemporânea: livre, independente e dona de uma complexidade que rejeita estereótipos. Ela é vivida com uma intensidade visceral por Sônia Braga, cuja atuação confere densidade e nuance a uma personagem que amou, perdeu, falhou, mas nunca desistiu de exigir da vida aquilo que julga merecer. Clara não é vítima nem heroína; é humana em sua essência, com todas as contradições que isso implica. Essa profundidade narrativa reflete a recusa de Mendonça Filho em recorrer a clichês sobre mulheres mais velhas, criando uma protagonista rica e multifacetada.

No centro da trama, Clara, uma crítica musical aposentada e viúva, enfrenta a tentativa de uma construtora de desalojá-la de seu apartamento no Edifício Oceania, situado na orla de Boa Viagem, Recife. A disputa é conduzida por Diego Bonfim, interpretado por Humberto Carrão, e seu avô Geraldo, vivido por Fernando Teixeira. Representantes do pragmatismo agressivo de um mercado imobiliário voraz, os dois não medem esforços para transformar o edifício em um shopping de luxo. Diego, inicialmente afável e persuasivo, revela-se a personificação do embate entre a modernidade desumanizante e os valores afetivos que Clara tanto preza. 

Flashbacks habilmente inseridos ampliam a compreensão do espectador sobre a protagonista. Em cenas que remetem aos anos 1980, vemos Clara celebrando os 70 anos de sua tia Lúcia, também uma figura emblemática de liberdade e resistência em um país historicamente repressivo. A conexão entre as duas é evidente: Clara herda o espírito indomável de Lúcia, mas vive em um contexto ainda mais desafiador, onde as relações humanas parecem cada vez mais subordinadas ao lucro. É nesse ambiente que Clara resiste, recusando-se a abandonar o espaço onde construiu memórias, enfrentou desafios, criou os filhos e sobreviveu a um câncer devastador. 

A narrativa se desdobra em camadas que exploram não apenas o conflito externo entre Clara e os empresários, mas também a riqueza de sua vida cotidiana. Suas interações com o salva-vidas Roberval (Irandhir Santos) e com a advogada e amiga Cleide (Carla Ribas), suas sessões de relaxamento à beira-mar e os encontros com novos amores revelam uma mulher que abraça a vida em sua plenitude. Kleber Mendonça Filho articula essas nuances com maestria, evitando melodramas desnecessários e permitindo que a resistência de Clara se manifeste de forma orgânica e poderosa.

O desfecho, controverso e visceral, encapsula o comentário social que permeia o filme: a deterioração dos valores humanos em um mundo que prioriza o capital acima de tudo. A resistência de Clara, embora aparentemente utópica, é um grito por integridade em uma sociedade cada vez mais desprovida de limites. Com “Aquarius”, Mendonça Filho não apenas desafia convenções narrativas, mas também oferece uma reflexão pungente sobre pertencimento, memória e os laços que nos ancoram em um mundo em constante transformação.

Filme: Aquarius
Diretor: Kleber Mendonça Filho
Ano: 2016
Gênero: Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★