“One Love” (1965), a canção do jamaicano Robert Nesta Marley (1945-1981), fala do amor como a única forma de verdadeira redenção do homem. Muito antes de tornar-se uma das grandes vozes de sua geração para além dos palcos, Bob Marley teve de confrontar a pobreza numa vila em Nine Mile, no estado de Saint Ann, e a atmosfera de constante repressão em Trenchtown, uma imensa favela no subúrbio da capital, Kingston.
A ligação da imagem de Marley a uma promessa de justiça social que nunca materializou-se é rediviva em “Bob Marley: One Love”, a cinebiografia a cargo de Reinaldo Marcus Green, que soube tirar bom proveito da aura mística do astro jamaicano por excelência. O roteiro hagiográfico de Zach Baylin, Frank E. Flowers e Terence Winter passa por cima de polêmicas como o consumo de ganja, o nome pelo qual a maconha é conhecida no Caribe, e os frequentes deslizes extraconjugais do músico — permitidos e incentivados pela filosofia rastafári, professada por ele —, preferindo concentrar-se em sua larga atuação política, por mais que Marley pregasse que todo governo mundano era ilegítimo.
“One Love” sofre de um mal que tem acometido produções congêneres recentes a exemplo de “Bohemian Rhapsody” (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher, ou “I Wanna Dance with Somebody: A História de Whitney Houston” (2022), de Kasi Lemmons: a tentativa de apagar os tropeços que acabaram por fazer a vida dessas estrelas trajetórias singulares, o que, claro, interferiu em seu trabalho, para melhor e para pior. Talvez essa seja uma característica de histórias sobre celebridades já mortas, uma vez que em “Rocketman” (2019) Dexter Fletcher, escalado para substituir Singer em “Bohemian Rhapsody”, arrisca mais ao recontar detalhes íntimos pouco edificantes da vida de Elton John, mas nem ele nem qualquer outro dos diretores citados tenha a toda culpa.
O espírito do nosso tempo, ávido por rótulos, é que empobrece tudo, e com o filme de Green não é muito diferente. Green cumpre uma espécie de protocolo ao apresentar Marley e sua extensa prole, abençoada por Jah — com destaque para Ziggy, um dos produtores do longa —, e sua esposa, Rita, backing vocal do I Threes, o conjunto que o acompanhava, passa pelo atentado que a deixou gravemente ferida, e em uma cena também violenta, menciona o gosto de Marley pelo futebol. Ok, próximo assunto.
Todos esperamos que, da mesma forma que “Bohemian Rhapsody” esmiúça os bastidores do Live Aid, Green exponha algum aspecto curioso do Smile Jamaica, o festival de música ancorado por Marley, mas o enredo permanece na superfície, sem conseguir tocar o coração de quem o ouve ou daqueles que querem sair do esperado e chegar perto do homem, uma vez que o mito não há de passar.
As performances entrosadas de Kingsley Ben-Adir e Lashana Lynch elevam as expectativas em muitos momentos, e o registro de Marley numa cerimônia rastafári, cantando um ponto Nyabinghi, berço do reggae, empolga. Lamentavelmente, sua mensagem é sufocada pela necessidade de se santificar um ídolo cheio de tantas contradições, feito todo mortal que se preze.
★★★★★★★★★★