Na Netflix, Kevin Hart se consolida como o homem do momento — uma figura constante no catálogo de longas do serviço de streaming. Seu contrato com a plataforma, permitindo que produza e protagonize múltiplos projetos anualmente, é um acordo que tanto pode fortalecer sua posição quanto desgastá-la. A linha entre o sucesso e a saturação, nesse contexto, é tênue.
Em títulos como “O Homem de Toronto” (2022), de Patrick Hughes, e “De Férias da Família” (2022), dirigido por John Hamburg, Hart demonstra um desempenho robusto. No entanto, por trás de alguns diálogos bem-humorados e enquadramentos interessantes, paira uma sensação de déjà vu. A fórmula repetida, com narrativas que se assemelham até em seus detalhes mais sutis, pode facilmente afastar um público cada vez mais exigente. Em “Lift: Roubo nas Alturas”, a direção habilidosa de F. Gary Gray impõe um equilíbrio necessário, domando os exageros que caracterizam a presença de Hart, e surpreende ao exibir uma contenção rara em suas atuações.
O filme apresenta Cyrus, líder de uma quadrilha internacional especializada em fraudes, prestes a executar um assalto que pode redefinir sua carreira criminosa. O roteiro de Daniel Kunka inicia a trama em Veneza, com Hart dirigindo-se a um leilão de arte contemporânea, onde “O Prelúdio”, obra do retratista americano Kehinde Wiley, é a estrela. Wiley, que se considera discípulo de Van Gogh, serve como fio condutor para uma crítica velada e perspicaz ao mercado de arte moderna — um universo onde quinquilharias ganham status de raridade, pulando de mãos em mãos, supervalorizadas, porém efêmeras e destituídas de real significado estético.
O nome sugestivo do golpista, John Bratby, insinua com astúcia os tons irônicos da narrativa. A investigadora Abby, interpretada por Gugu Mbatha-Raw, surge no encalço de Cyrus, e a dinâmica entre os dois revela-se um dos pontos altos da história. A tensão dá lugar a uma inesperada química romântica, trabalhada com um frescor que desafia os clichês do gênero.
Enquanto o relacionamento se desenrola, Gray mantém o ritmo ágil e a tensão crescente no centro do enredo: o roubo de meio bilhão de dólares em barras de ouro a bordo de uma aeronave da Sky Suisse a 40 mil pés de altitude, rumo a Zurique. Abby planeja capturar Cyrus de maneira limpa e discreta, mas a complexidade da operação se revela maior do que o esperado. A quadrilha infiltra-se até mesmo no controle de tráfego aéreo, e a execução do plano inclui uma cena marcante em que Harry, um funcionário do aeroporto vivido por David Proud — um ator que, fora das telas, também é paraplégico — denuncia uma colega por capacitismo para ganhar tempo e assegurar o sucesso do golpe.
Esse toque de incorreção política é um dos elementos mais intrigantes da obra. Em um mundo que exige justiça e inclusão, a narrativa subverte expectativas ao oferecer uma vitória moralmente ambígua. Ao final, não é Cyrus quem se rende, mas sim Abby, deixando um rastro de questionamentos sobre ética e justiça.
Gray e Hart entregam, em “Lift: Roubo nas Alturas”, uma experiência que mistura entretenimento leve com nuances críticas, mantendo-se sempre à beira entre o previsível e o surpreendente. Hart mostra que ainda pode equilibrar carisma com controle — desde que a repetição não o derrube do voo.
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