De arrepiar e inspirar: uma jornada de solidão e autodescoberta no filme mais tocante da Netflix em 2024 Divulgação / Netflix

De arrepiar e inspirar: uma jornada de solidão e autodescoberta no filme mais tocante da Netflix em 2024

A vida tem seu ponto final inevitável, mas, como sugere Michihito Fujii no título de sua nova obra, entre aqueles que partem e os que permanecem com o peso da ausência, persiste um vínculo invisível — um elo que desafia as barreiras do tempo e da compreensão humana.

“A Saudade que Fica” é uma reflexão cinematográfica sensível e sofisticada, onde Fujii busca traduzir, com maestria, a complexidade emocional que permeia um dos momentos mais dolorosos da existência humana: a despedida definitiva. Este ciclo universal, que se repete incontáveis vezes até o momento em que enfrentamos nossa própria transição, ganha na narrativa do diretor japonês um tratamento poético e inusitado. Em seu estilo característico, ele transforma as nuances da morte — dor, revolta, mágoa e inconformidade — em arte, mas com um toque de originalidade: seus personagens não conseguem completar a travessia para o além enquanto ainda carregarem dívidas espirituais com o mundo dos vivos.

O roteiro, engenhoso e não linear, apresenta quatro personagens falecidos, cada um lidando com seus próprios dilemas e tentando superar desafios que os separam da redenção final. A trama se inicia com Minako, uma dona de casa interpretada por Masami Nagasawa, que desperta numa praia desolada, cercada de destroços. A ambientação inicial sugere que ela sobreviveu a uma catástrofe marítima, mas logo a narrativa revela algo mais profundo e inquietante: Minako está morta. Presa em uma dimensão intermediária, ela sente a ausência avassaladora de seu filho, Ryo, uma dor que anuncia o verdadeiro conflito da história.

Acompanhada de outros três personagens igualmente intrigantes — Akira (Kentaro Sakaguchi), um jovem rebelde; Shori (Ryusei Yokohama), um chefe da Yakuza; e Michael (Lily Franky), um excêntrico produtor de cinema — Minako descobre que sua jornada pós-vida será tudo menos previsível. É Michael, inspirado em uma figura real e homenageado no epílogo do filme, quem apresenta à protagonista e ao público as regras desse universo peculiar. As almas perdidas, incluindo Minako e seus companheiros, são obrigadas a participar de desfiles espirituais, os chamados “parades” do título original, até que as divindades julguem se estão aptas a ascender a um plano superior.

Esse contexto permite a Fujii explorar um delicado equilíbrio entre a leveza e a profundidade. A absurda comicidade que permeia os desafios enfrentados pelos personagens, especialmente a falta de habilidades de Minako para lidar com as exigências espirituais, confere ao filme um tom único. O diretor utiliza esses momentos para revisitar a trajetória de cada personagem, oferecendo-lhes a oportunidade de encarar as sombras do passado e, ao mesmo tempo, provocando reflexões sobre temas universais como arrependimento, perdão e a natureza da redenção.

Com cenas pontuadas por humor e sensibilidade, Fujii mais uma vez demonstra sua capacidade de abordar temas densos sem perder a conexão com o público. Assim como em seus trabalhos anteriores, “O Vilarejo” e “Dias Difíceis”, ambos lançados em 2023, o diretor subverte as expectativas ao transformar um tema sombrio em um mosaico de emoções, onde a esperança e o absurdo coexistem em perfeita harmonia.

“A Saudade que Fica” não é apenas um filme sobre a morte; é uma jornada sobre o que permanece, sobre as pendências que carregamos e sobre como, mesmo após o fim, somos desafiados a confrontar o que deixamos inacabado. Fujii entrega uma obra que transcende gêneros e convida o espectador a refletir sobre sua própria mortalidade — e, acima de tudo, sobre o que realmente significa viver e deixar partir.

Filme: A Saudade que Fica
Diretor: Michihito Fujii
Ano: 2024
Gênero: Drama/Fantasia
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★