Embora o Brasil pareça uma peça deslocada no quebra-cabeça da América do Sul, somos parte de um organismo interdependente, que adoece e se regenera em uníssono. Essa dicotomia entre pertencimento e alienação reflete o papel ambíguo do país na região. Enxergamo-nos como intrusos em nossa própria casa, a ovelha negra em uma família de raízes comuns. No entanto, qualquer tentativa de dissociação é apenas ilusão; nossa história está intrinsecamente entrelaçada à dos vizinhos sul-americanos.
Esse vínculo não passou despercebido aos olhos das grandes potências. Os Estados Unidos, por exemplo, desempenharam um papel decisivo ao arquitetar intervenções em governos latino-americanos, incluindo a instauração da ditadura militar no Brasil em 1964. Sob a justificativa de combater o “fantasma do comunismo”, Washington alinhou os rumos do continente aos seus interesses, desestabilizando democracias e apoiando regimes autoritários. No Brasil, esse processo começou com o golpe contra João Goulart; no Chile, consolidou-se em 1973 com o sangrento golpe que derrubou Salvador Allende, abrindo caminho para a ditadura de Pinochet.
É nesse contexto que “1976”, o notável primeiro longa-metragem da atriz e diretora chilena Manuela Martelli, encontra seu espaço. A produção emerge como parte de um movimento cinematográfico que busca preservar a memória dos horrores da ditadura chilena, alertando contra o revisionismo histórico e o ressurgimento do conservadorismo global. A narrativa segue Carmen, vivida com elegância por Aline Küppenheim, uma mulher da elite chilena que se depara com dilemas éticos profundos ao ser envolvida em um conflito político perigoso.
Carmen, esposa e mãe de médicos, encontra-se em sua casa de praia para supervisionar reformas quando o padre Sánchez (Hugo Medina) solicita sua ajuda para tratar de Elías (Nicolás Sepúlveda), um jovem ferido. A princípio, Carmen acredita estar cuidando de um simples delinquente, mas logo descobre que ele é um comunista engajado na resistência contra o regime de Pinochet. Esse confronto com uma realidade que desafia sua posição social e seus privilégios a transforma. Dividida entre sua vida convencional e uma nova faceta clandestina, Carmen assume o papel de uma espécie de agente dupla, transitando entre festas da elite reacionária e sua missão secreta de ajudar um guerrilheiro.
A narrativa, que mistura elementos de drama político e noir, é amplificada pela atmosfera cuidadosamente construída. A trilha sonora de Mariá Portugal adiciona tensão com sua contenção inquietante, enquanto a fotografia de Soledad Rodríguez banha o cenário em tons dourados, evocando uma falsa sensação de tranquilidade. As manchas de tinta vermelha que aparecem ocasionalmente são um lembrete simbólico do sangue derramado durante o regime de Pinochet. Os figurinos assinados por Gabriela Varela e Pilar Calderón complementam essa dualidade, apresentando Carmen como uma mulher refinada e elegante, cuja aparência sofisticada esconde uma inquietação interna e um desejo de escapar das amarras sociais.
A complexidade de Carmen vai além de suas ações visíveis. Sua ajuda aos oprimidos e sua insatisfação com os papéis que lhe foram impostos — como mãe, avó e socialite — revelam um conflito interno de identidade e propósito. Sua trajetória não é uma transformação completa, mas um recorte de sua vida, um episódio que abala momentaneamente sua existência, sem, no entanto, alterar a estrutura da elite que representa.
“1976” não é apenas um registro da repressão ditatorial; é também um estudo sobre privilégio, moralidade e resistência. Ao focar na jornada íntima de Carmen, o filme coloca em perspectiva a relação entre os privilégios da elite e as lutas daqueles que ousam desafiar um regime opressor. Manuela Martelli entrega uma obra madura e instigante, que, ao iluminar o passado, nos convida a refletir sobre os perigos de esquecer o que já foi conquistado e perdido.
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