Descrever um filme sobre a infância como “encantador” pode parecer um lugar-comum ou uma tentativa de resumir algo intrincado demais. Afinal, o universo infantil carrega simultaneamente a leveza dos sonhos e o peso das primeiras confrontações com a realidade. Nesse equilíbrio delicado, “O Trem Italiano da Felicidade” se destaca como uma obra de intensidades vibrantes, onde Cristina Comencini, herdeira de uma linhagem notável de cineastas italianos, emerge como uma narradora singular. Em sua direção, ela explora as contradições de uma época e de um lugar marcados pela dor coletiva, traçando um retrato que não apenas revisita uma memória histórica de seu país, mas também expõe feridas universais que persistem ao longo das gerações.
Baseado no romance homônimo de Viola Ardone, lançado em 2019, o filme ganha vida através do roteiro habilmente adaptado por Furio Andreotti e Giulia Calenda. A trama transporta o espectador para a Nápoles do pós-guerra, onde o olhar de um garoto de oito anos conduz a narrativa. Amerigo, protagonista e vítima de uma infância devastada pela pobreza e pela desesperança, simboliza a luta silenciosa de uma sociedade inteira tentando sobreviver às consequências da Segunda Guerra Mundial. É impossível não sentir a tensão visceral que permeia essa reconstrução histórica, já que o roteiro, que conta também com os nomes de “Ainda Temos o Amanhã” (2023), aprofunda-se em temas que, mesmo passados 80 anos, encontram ecos no presente.
A infância, com suas marcas indeléveis, é retratada aqui como um território de experiências capazes de moldar toda uma existência. As cicatrizes emocionais não são meras recordações dolorosas, mas fragmentos vivos de um passado que insiste em se perpetuar. Nesse sentido, “O Trem Italiano da Felicidade” dialoga com clássicos como “Amarcord” (1973), de Fellini, e “Fanny e Alexander” (1982), de Bergman, ao explorar a memória infantil com uma profundidade que transcende a nostalgia. A diretora, no entanto, não se contenta em caminhar pelas superfícies seguras da recriação histórica; ao contrário, sua abordagem desafia o espectador a confrontar a realidade bruta e, por vezes, desconfortável de um período que parece distante, mas é assustadoramente familiar.
O filme se abre com Amerigo Benvenuti, um maestro renomado, chegando para uma apresentação no Teatro Dell’Opera di Roma. Sua serenidade é abruptamente rompida por uma ligação que anuncia a morte de sua mãe. É esse evento que desencadeia a viagem às memórias do protagonista, transportando-nos para sua infância de privações. A narrativa assume um tom quase visceral ao mostrar Amerigo como um menino desnutrido e miserável, cuja fragilidade física é um reflexo das condições extremas enfrentadas por muitos na Itália daquele tempo.
O trem do título, que levava crianças do empobrecido sul para serem acolhidas por famílias comunistas no norte, é apresentado como uma tábua de salvação para mães como Antonietta. Vivida com intensidade por Serena Rossi, Antonietta é uma mulher que, sem alternativas, toma a decisão de enviar o filho para longe, na esperança de que ele encontre um futuro melhor. A relação entre mãe e filho é um dos pilares emocionais do filme, permeada por diálogos pungentes e momentos que oscilam entre a ternura e o conflito. Amerigo, interpretado de forma surpreendentemente madura por Christian Cervone, é o fio condutor de uma história repleta de subtramas que oferecem tanto angústia quanto lampejos de humor — como as insinuações de que os comunistas seriam devoradores de crianças ou as estratégias improvisadas dos meninos para ganhar algumas moedas.
Comencini dosa com maestria os elementos de tragédia e poesia, criando uma obra que ressoa não apenas como uma revisitação histórica, mas também como um estudo íntimo das complexidades emocionais de seus personagens. “O Trem Italiano da Felicidade” não é apenas uma viagem pelo tempo; é um convite a refletir sobre os laços que nos conectam e sobre as cicatrizes que carregamos — aquelas que moldam quem somos e aquelas que, talvez, nunca deixem de doer.
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